sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

O que é RPG?

O encontro de diferentes escolas 

Por Quiral Alquimista

Essa é uma pergunta que pode ser respondida de diversas maneiras. A forma mais comum e operacional envolve, geralmente, apresentar o significado da sigla, do inglês: Role-Playing Game, seguido de uma explicação curta do tipo “um jogo de construir histórias, guiado por regras e pela imaginação” ou alguma derivação disso. O meu objetivo aqui é compartilhar uma visão mais visceral, com um convite a mergulharmos mais profundamente neste assunto.

PRECEDENTES

O RPG de mesa como conhecemos hoje surgiu de uma hibridação entre clássicos Jogos de Guerra de Fantasia com tradições de reencenação histórica, teatro de improvisação e jogos de salão. O que vou apresentar a seguir é um resumo geral de cada um desses tópicos, começando pelo protótipo de 1974 de Dave Arneson e Gary Gygax, e outras origens de jogos que se chocaram a partir disso.


JOGOS FANTÁSTICOS DE ESTRATÉGIA  (JFE)

Em inglês são chamados de wargame, e por aqui costumamos encontrar traduzidos como jogos de guerra ou jogos de estratégia.  Evoluíram de simulações militares tradicionais, como o Kriegsspiel  (desenvolvido na antiga Prússia) com a inclusão de elementos de fantasia, como magos, elfos, monstros e mundos fictícios, fortemente inspirados pela literatura fantástica. O mais importante precursor dessa linhagem foi o Chainmail, publicado por Gary Gygax e Jeff Perren em 1971, que possuía um suplemento que anunciava:


“A maioria das batalhas fantásticas relatadas em romances se assemelham mais à conflitos medievais do que a formas anteriores ou posteriores de combate. Por isso incluímos aqui um breve conjunto de regras que permitirão a adição de uma nova faceta ao seu hobby para recriar lutas épicas relatadas por J. R. R. Tolkien, Robert E. Howard e outros escritores de fantasia; ou então, você pode criar seu próprio "mundo" e conduzir campanhas e conflitos fantásticos com base nisso.”

Figura 1. Recorte da arte do suplemento de fantasia de Chainmail 2e


Dave Arneson, na época um jovem entusiasta de jogos de guerra da cidade de Mineápolis, já havia tido experiências em jogar por projeção em primeira pessoa nas mesas de David Wesely, com Braunstein, desenvolvido principalmente a partir do Strategos: The American Art of War (Kriegspiel). Dave Arneson combinou suas experiencias de jogos de estratégia, jogos de tabuleiros e Braunstein com o suplemento para fantasia do Chainmail para construir o caldo primordial do primeiro RPG que conheceríamos, gestado em sua campanha Blackmoor.  


O lançamento do D&D original 

Em 1972 Dave Arneson mestrou uma sessão de Blackmoor para Gary Gygax e seu grupo de jogos de Lake Geneva (Wiscosin), que explodiu a mente de todos. Rapidamente eles acordaram uma nova parceria, que não foi novidade, pois ambos já haviam desenvolvido trabalhos anteriores em conjunto, mas este se tornaria o mais famoso de todos e mudaria o mundo dos jogos para sempre. Nasceu assim Greyhawk, uma estrutura similar a Blackmoor, palco da campanha paralela que serviu de base para a formulação do protótipo do maior RPG de todos os tempos. Gygax incrementou muito conteúdo durante esta germinação, com diversos enxertos para além do Chainmail, como de jogos de tabuleiros (ex.: Diplomacy ou Outdoor Survival) e da literatura (ex.: magia vanciana). O nome temporário “Fantasy Game” (Jogo da Fantasia) foi substituído por Dungeons & Dragons (umas das prováveis explicações é de que o nome foi escolhido por sua filha, Cindy). O produto desses dois anos de trabalho frenético, com sessões diárias por longas horas e com dezenas de jogadores, e muita dor de cabeça para viabilizar sua produção foi uma caixa de papelão rígido contendo três livretos em grampo: Men & Magic, Monsters & Treasures e The Underwolrd & Wilderness adventures, bloco de arbitragem e fichas. O subtítulo era:     


“Regras para Jogos de Estratégia de Fantasia Medieval  
Campanhas Jogáveis ​​com Papel, Lápis e Miniaturas”

Figura 2. Recorte de capa do D&D Original (1974) 

Repare: “Regras para Jogos de Estratégia de Fantasia Medieval”. A mentalidade no começo dos anos 1970 era de que se tratava, de certa forma, de uma customização de JGF, embora fosse uma definição aquém do que estava ali surgindo.  


O surgimento da sigla “RPG”

O sucesso da proposta de jogar no “estilo D&D” bateu forte em Kenneth Eugene St. Andre, um bibliotecário público que adorou o jogo de fantasia, mas achou as regras confusas, por isso resolveu escrever suas próprias.

"Eu só queria algo que eu pudesse jogar com meus amigos
a um preço razoável, com equipamentos razoáveis." 

Ele fez uma publicação independente, que logo foi republicada pela editora Flying Buffalo, se tornando o segundo produto da linha disponível no mercado. No anúncio original, estava escrito:

Tunnels & Trolls é um jogo da Flying Buffalo na mesma linha de D&D. T&T não é extensivo (ou caro) como D&D e usa dados regulares. Pode ser usado em vez de D&D ou como um suplemento para D&D”

Na época a TSR já estava lutando para defender seus direitos em diversas frentes, dentre elas em anúncios como este. O embate judicial fez com que a Flying Buffalo alterasse o termo que define seu jogo. Pela primeira vez, dentro do meu conhecimento, surgiu a expressão “Role-Playing Game” (RPG) como definição deste tipo de jogo. A imagem do famoso e marcante anúncio de 1976 está registrada a seguir:  

Figura 3. Anúncio de T&T como RPG

Em meados dos anos 1970, RPG tinha um significado bem estruturado na comunidade. Tratava-se de um tipo de jogo que emancipou dos JFE (e de jogos de tabuleiro) com fortes influências da literatura fantástica. 

ORIGEM DO TERMO 

A expressão Role-playing vem do alemão rollenspiel, que originalmente era usada em psicoterapia (psicodrama), técnica trazida para os EUA por por Jakob L. Moreno, que imigrou da Austria em 1925. Em resumo, sua proposta envolvia um tratamento em que pacientes simulavam ser uma pessoa em uma circunstância fictícia ditada pelo terapeuta. Rapidamente o termo entrou no vocabulário de educadores e começou a ser usado em diversas técnicas de aprendizado (e mais tarde, nos jogos).

OUTROS TIPOS DE Role-Playings

Embora a gente possa usar a lente do D&D como protótipo do RPG como conhecemos hoje, muitos outros ingredientes interferiram nesse caldo, alterando drasticamente o seu sabor e proporcionando diversas outros jogares. De maneira resumida e objetiva apresento três escolas que se misturaram ao RPG ao longo de seu surgimento: a reencenação histórica, o teatro de improvisação e jogos de salão. 

1. Reencenação histórica

Também pode ser conhecida como reconstituição histórica, é uma experiência lúdica de emular aspectos de um evento ou período histórico. Os mais antigos registros que eu encontrei desse tipo de atividade remetem ao século XVII, e pode ser usado de forma educacional, como em uma “aula viva” ou “museu vivo”, bem como de forma recreativa, como em um casamento temático ou uma festa comemorativa. Em muitos casos, as pessoas (amadoras ou profissionais) assumem papeis de personagens específicos ou se projetam na fantasia como se fossem alguém daquela época. Isso é um tipo de interpretação (ou representação), que em inglês é chamado de role-playing.

2. Teatro de improvisação

Basicamente é uma dinâmica de criação espontânea durante a execução da peça, sem nenhum (ou com muito pouco) roteiro pré-estabelecido. Em sua forma mais crua e pura, tudo (inclusive personagens) é criado colaborativamente conforme a improvisação se desenrola. Mesmo na dramaturgia tradicional esse tipo de técnica é usada para o treinamento de atores e no ensaio das peças. Isso transbordou para além do palco, seja no cinema ou televisão, bem como em diversas outras áreas profissionais, em busca de desenvolver capacidade de comunicação, resolução criativa de problemas e trabalho em equipe.

Jogos de teatro foram projetados como ferramenta para esse tipo de aprimoramento há mais de dois mil anos. Há vestígios deste tipo de atividade na Grécia antiga, três ou quatro séculos A.C., como podemos encontrar no livro Origins Theater Anc Greece Beyond: From Ritual to Drama. A popularização deste tipo de teatro de improviso foi fortemente influenciada pela Commedia dell'arte, a partir do século XVI, originária do teatro italiano.

No teatro sueco, por exemplo, há jogos competitivos entre atores, em festivais de ópera, com antecedentes que remetem ao século XII, sendo o mais famoso deles, o Dalhalla Opera Festival

É inequívoco o fato de que jogos com objetivo de desenvolver habilidades teatrais ou para criação de uma história para um público-alvo eram uma forma de “role-playing game”.

3. Jogos de salão

São atividades recreativas que ocorrem em ambientes familiares, festas ou encontros sociais, popularizadas entre as classes média e alta do Reino Unido a partir do século XIX, no período vitoriano, que ocorriam em salões de festas (daí o nome) e se expandiu para outros países. Em resumo, se caracterizam por conter regras simples, interações entre participantes e foco no entretenimento (talvez você já tenha ouvido por aí, “o importante é a diversão”). Alguns famosos exemplos são jogos de cartas, jogos de imitação (como mímica) ou jogos de adivinhação (como charadas).


Ao se chocarem, essas diversas diferentes escolas e seus variados ingredientes acabaram sendo incorporados ao D&D, o que proporcionou, ao longo de décadas, mudanças claras e estruturais na forma de jogar o D&D, bem como, gerou a emersão de outros RPGs.


CONSIDERAÇÕES QUIRAIS

Voltando à pergunta inicial: “o que é RPG?”, acredito que é possível percebermos que a publicação da Flying Buffalo em 1976, anunciando o Tunnels & Trolls como “um jogo de conceito similar a outros RPGs de fantasia” tinha um claro objetivo de caracterização de seu conteúdo, uma vez que a descrição original feita pela TSR como “Jogo de Guerra de Fantasia Medieval” não era uma definição adequada. Por outro lado, ao longo de décadas esse estilo de jogo foi fortemente moldado e, de certa forma, descaracterizado. Hoje se falarmos simplesmente que “algo é um RPG” dificilmente ocorrerá entendimento sem nenhum tipo de ruído. O conjunto expandiu demais e suas fronteiras já não são mais visíveis, o que tornou a atual definição vaga, falhando em qualquer delineamento com precisão.    

Acredito que é para evitar esse tipo de ruído que Eero Tuovinen descreveu seu manual de estilo como “Muster, uma introdução amigável à particular essência e técnica de se jogar D&D como um Jogo de Guerra”. Esse material foi publicado em 2022, quase cinquenta anos depois da definição feita para T&T, o que me fez refletir sobre como essas caracterizações podem ser fugazes. Ao mesmo tempo que a sigla RPG foi criada para melhor elucidar um estilo particular de jogar para não ser confundido com jogos de guerra ou de tabuleiro dos anos 1970, há quem atualmente resgate a definição da capa original do D&D para evitar ambiguidades. A proposta do Muster é de um RPG focado no desafio, e por isso é importante apresentar seu estilo de maneira consistente.

Talvez seja por conta desses desentendimentos que muitas e calorosas discussões já aconteceram nos meios do RPG. Muitos ruídos de jogo podem ter sua raiz em um não contorno adequado de qual agenda aquele RPG se referia. Até agora, no momento de escrita deste artigo, não tenho boas soluções para além disso, mas acredito que seja o suficiente para avançarmos um pouco nesta nossa jornada.

TUDO É XP

XP INDICADO (mergulhe ainda mais)

Além de linques diretos adicionados ao longo do texto (palavras marcadas), deixo aqui uma lista de referências com materiais sobre esse tipo de tema.


  1. The Evolution of Fantasy Role-Playing Games, de Michael J. Tresca

  2. Secrets of Blackmoor

  3. Playing at the world, de Jon Petterson

  4. Origins Theater Anc Greece Beyond:From Ritual to Drama, de Eric Csapo e Margaret Miller

  5. O império da imaginação, de Michael Witwer (vídeo-resenha aqui)

  6. Muster – A primer for War, de Eero Tuovinen (video-resenha aqui)


6 comentários:

  1. "O que é RPG?" — eu lembrei do episódio de Bigben Theory onde os nerds levam a Penny até a comic store e pergunta algo como "qual o melhor super herói?" daí alguém diz "fala baixo! você quer iniciar uma briga?" XD

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    Respostas
    1. hahaha, assunto "polêmico" :D

      Mas minha intenção aqui não é polemizar, busco estruturar pensamentos para contribuir e aprender :)

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    2. Sim rs
      Mas também estudar isso me fez refletir na dinâmica desses entendimentos sobre as caracterizações que usamos. Isso me fará conectar com o movimento OSR, e como também seu significado se perdeu ao longo do tempo. Ainda vou escrever um artigo sobre isso!

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  2. Rpg é a brincadeira mais complexa que existe.

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