quarta-feira, 11 de junho de 2025

O que "foi" a OSR?

 

Por Quiral Alquimista

No ano de 2017 eu assisti a uma aventura ao vivo que era uma divulgação do Dungeon Crawl Classics RPG pelo lançamento do financiamento coletivo de sua versão em português. Logo de imediato fiquei encantado com a primeira camada que percebi do sistema, com seus dados estranhos, as artes em preto e branco, personagens nível zero, todo o conteúdo em um único livro e alguns outros fatores que talvez eu apresente aqui oportunamente em um artigo dedicado. Para manter o foco, simplifico lhe dizendo que a experiência DCC-RPG foi crucial para os movimentos que fiz em seguida, como a curiosidade por suas origens, o que me levou a conhecer essa tal de OSR. Uma sigla do inglês para Old School Revival (ou Old School Renaissance) que significa algo como “O Resgate da Escola Clássica”. Posso dizer, sem sombra de dúvidas, que a XP que conquistei a partir de materiais e pessoas que interagiam com a OSR mudou para sempre minha vida como RPGista. Eu já tinha algo em torno de 25 anos de RPG, e nunca tinha visto nada tão valioso. Eu sei que esse é um termo em disputa, e que talvez você já tenha encontrado outras definições ou formas de explicar a coisa por aí. Este artigo se trata de uma leitura própria dos acontecimentos, ancorada em evidência concretas, com análise crítica e objetiva dos fatos.


ANOS 2000 E A TERCEIRA EDIÇÃO DO D&D

Para entender o que foi a OSR, é fundamental que se compreenda muito bem o cenário dos anos 2000s e a terceira edição do D&D. Eu não prestei atenção nisso à época, pois estava envolvido em campanhas com esta nova edição (e sua versão revisada, a 3.5), e mais tarde, em 2008, abracei a 4ª edição. Não era necessário ter a visão além do alcance de Thundera, pois o que eu não percebi foi um elefante na sala.

Em 1997 a Wizards of the Coast (WotC), uma empresa que crescia muito rapidamente a cada ano, anunciou a compra da TSR e de todos os produtos que a pertencia. Dentre eles e o maior RPG de todos os tempos: Dungeons & Dragons. As dívidas da TSR foram assumidas como parte da aquisição e muitos imbróglios, dentre elas pendências de royalties com Dave Arneson, o que permitiu uma decisão estratégica de remover o “Advanced” da linha AD&D e lançar sua terceira edição como Dungeons & Dragons. Eventualmente os escritórios corporativos da TSR foram completamente fechados, e foi nessa janela de transição que se tomou a decisão mais importante e central da história que trato neste artigo: o lançamento da terceira edição do D&D sob o comando dos três projetistas de jogos: Monte Cook, Jonathan Tweet e Skip Williams.

No meio dessa história, e na esteira do sucesso crescente da WotC com Magic: The Gathering e fermentação da nova edição do Dungeons & Dragons que a WotC foi adquirida pela Hasbro em 1999 por aproximadamente 325 milhões de dólares, se tornando assim um departamento estratégico de jogos dentro da gigante do entretenimento.

Embora eu já tenha tratado desse assunto de forma resumida no artigo sobre as edições do D&D, acredito que, para os fins da nossa discussão atual, é relevante compreendermos dois aspectos-chave: o novo sistema foi, pela primeira vez, alterado drasticamente para funcionar sobre uma mecânica centralizada no d20 e essa edição foi lançada junto de uma abertura do Documento de Referência do Sistema (do inglês System Reference Document, SRD) com uma licença aberta de jogos (do inglês Open Game License, OGL).

Forte impacto na jogabilidade

A nova estrutura de regras impactou profundamente toda a jogabilidade do D&D, que foi drasticamente alterada em seus três eixos: sistema, mentalidade e estética. 

1) Sistema: regras e sua usabilidade - As regras passaram a ser interconectadas por uma mecânica central de resoluções de conflito, que gira em torno do lance de um d20 + modificadores, contra um número alvo, o que ficou conhecido como “sistema d20”. Todo o sistema foi estruturado sobre uma alta granularidade, com progressão numérica importante, de forma que pequenas escolhas mecânicas (ex.: perícias, talentos, combinação de classes) impactam significativamente na forma de jogar, incentivando uma construção “engrenada”. As movimentações táticas passaram a ter grande peso, de forma que usar grades de batalha com medição exatas ganharam muita relevância para definir com acurácia posição, alcance e áreas de efeito.

2) Mentalidade: é a forma de pensar que se adota ao se engajar com um jogo - A mudança estrutural do sistema alterou a forma como se racionaliza o jogo, com mais enfoque no pensamento tático e otimizador. Personagens “bem construídos” são parte fundamental desse jogar, pois o sistema foi projetado para oferecer uma ampla variedade de escolhas mecânicas, fingindo uma maior liberdade, mas com diversas “opções armadilha” (trap options), que são escolhas apresentadas como viáveis, mas significativamente menos eficazes do que outras. Essas opções subótimas são construídas para que participantes menos experientes as escolham por parecerem interessantes ou temáticas à primeira vista, e aprendam com seus erros ao longo do jogo. Isso significa que “jogar bem” envolve uma evolução de maestria do sistema (system mastery). Isso vem casado com o que é chamado de economia de ações, que envolve uma preocupação concentrada em não desperdiçar opções de ações em um combate: ação, movimento, ação rápida, ataque de oportunidade.

Eu costumo chamar isso de “um jogo fora da mesa”, pois demanda estudar o sistema e melhor dominar suas opções de forma técnica, o que leva à mentalidade para buscar sinergias e otimizações, chamadas de “min-máx”, que envolve reduzir ao mínimo possível características que não trazem benefício direto e maximizar as características que geram maior vantagem mecânica.

3) Estética: envolve interações endógenas e exógenas com o jogo - As interações endógenas são os cenários, o mundo ficcional. No D&D 3e o uso de cenários completos e detalhados, como Forgotten Realms, passou a ser o padrão, principalmente os que possuem relação simbiótica com o sistema, com ênfase em personagens poderosos, magia abundante como ciência estruturada (listas, escolas, componentes) com civilizações complexas, panteões, e uma fantasia “explicada”. O cenário de Eberron, por exemplo, é considerado como a melhor expressão desta edição, lançado após vencer um concurso promovido pela WotC em 2002, destaca-se por suas características de magia onipresente e tecnologia fantástica, amplamente usadas no cotidiano, com seus trens elementais, bancos e toda sua pegada de steampunk mágico. Naturalmente aventuras e cenários caseiros começam a perder espaço para materiais oficiais, que entrelacem intrinsicamente com a 3e.  

Já as interações exógenas envolvem a forma como o jogo é apresentado às pessoas. Tem a ver com suas artes, diagramação, linguagem e referências. As ilustrações são de realismo técnico, com ênfase em heróis poderosos em ambientes fantásticos. Os textos foram escritos de forma normativa, com objetivo de transmitir informações claras para priorizar a interpretação estrita e literal das regras oficiais do jogo, com valorização para uma homogeneização de decisões. Isso significa que parte da proposta desse jogo envolve ter um sistema como ferramenta mediadora para um jogo certo e justo, com espaço reduzido para opiniões subjetivas. Essa estética impacta na mentalidade de um jogo que valoriza a fidelidade ao sistema, a uniformidade nas decisões e o domínio técnico das regras como caminho para uma experiência equilibrada.

Esses três aspectos combinados formam o que eu chamo de jogabilidade,   que foi drasticamente alterada, culminando com a ruptura de retrocompatibilidade e intercambialidade. Isso significa que todo o conteúdo de quase 30 anos de TSR passa a funcionar muito mal ou não funcionar com esta nova edição do jogo, bem como materiais lançados para essa edição são muito mal aproveitados nas edições da TSR.

Um ataque de oportunidade? A OGL 1.0a e suas possibilidades

O outro ingrediente-chave que compõe esse caldo foi a OGL 1.0a. Ela foi introduzida com a intenção de que qualquer pessoa, editora comercial ou não comercial, pudesse produzir materiais para D&D, de forma terceirizada, usando o chassi do Documento de Referência do Sistema (do inglês System Reference Document, SRD), sem pagar pelo uso da propriedade intelectual associada. A intenção por trás disso era lançar uma isca para ser mordida por profissionais ou amadores do RPG, que passariam a produzir conteúdo generalizado para D&D. Nascia assim a era do “sistema d20” (do inglês d20 system), estratégia que resultou em uma inflação de materiais e contribuiu de forma decisiva para consolidar o D&D como a marca principal do RPG, ampliando sua base de jogadores e conteúdo. Embora essa ideia tenha sido de grande sucesso comercial, ela teve alguns efeitos colaterais. Nada que fizesse cócegas na gigante WotC/Hasbro, mas crucial para o que abordo neste artigo: o surgimento do movimento OSR. A OGL não apenas abria a SRD da terceira edição do D&D, mas de qualquer edição anterior, permitindo assim que as versões antigas do D&D da era TSR fossem “liberadas” e adaptadas, dando base legal para o que viria ser a base fundacional da OSR.


Como surgiu a OSR?

Já no começo dos anos 2000 ocorreu sua fermentação por meio de algumas editoras que lançaram produtos para a terceira edição prometendo o espírito das edições antigas, como a Necromancer Games (2000) ou a Goodman Games (2003), esta que lançava a linha de aventuras Dungeon Crawl Classics (DCC), e que cerca de dez anos depois lançaria um sistema próprio (o DCC-RPG, que comentei no início deste artigo).

Logo nessa esteira veio uma proposta ainda mais ousada, a editora Kenzer & Company lançou o jogo Hackmaster em maio de 2001. O sistema foi inicialmente fictício, na forma de uma paródia de D&D jogado por personagens de história em quadrinhos, na segunda metade dos anos 1990s. Havia uma comoção de fãs para produção do jogo real, que acabou sendo possibilitada em 2001, lançada como uma 4ª Edição, uma brincadeira e homenagem às versões fictícias anteriores dos quadrinhos. A inovação aqui foi sua construção sobre as regras hibridizadas de AD&D1e, AD&D2e e vários suplementos da era TSR. Embora eu não saiba afirmar com acurácia sobre seu potencial retrocompatível, dentro do meu conhecimento este foi o primeiro sistema a ousar um rumo oposto ao da WotC e sua 3ed do D&D, sendo uma espécie de proto-OSR. Alguns imbróglios jurídicos acabaram levando à K&C a uma reestruturação em uma nova edição, lançada em 2009, na forma de Hackmaster Basic, já projetado com regras diferentes das dos D&Ds para evitar problemas contratuais.

Outro exemplo importante desse período embrionário foi o Castles & Crusades, projetado por Davis Chenault e Mac Golden. Na GenCon de 2004 eles trouxeram uma tiragem limitada de 1.000 caixas brancas, para relembrar a edição setentista do D&D, contendo três livretos e dados "Zocchi" com números sem pintura e um giz de cera (para colorir os números dos dados). Tratava-se de uma espécie de jogo rápido do que foi lançado no final daquele ano, e logo teve apoio valioso de Gary Gygax e Rob Kuntz, que usaram as regras de C&C para ressuscitar sua antiga campanha de D&D, Castle Greyhawk (agora renomeada como Castle Zagyg). A estrutura geral do C&C foi montada sobre as regras da 3ª edição do D&D, mas ele carregava fortes credenciais do D&D antigo pela participação de GG e Kuntz. Embora o entusiasmo inicial tenha sido grande, ele veio acompanhado logo em seguida de inúmeras reclamações sobre o desalinhamento do sistema com a jogabilidade do D&D antigo, o que acabou impulsionando o público para outros rumos.

É perfeitamente possível conectar o surgimento do movimento OSR com a popularização da internet, com o avanço da banda larga e a consolidação de fóruns e blogues, o que foi decisivo para o processo. Espaços como Dragonsfoot Knights & Knaves Alehouse reuniram entusiastas do D&D antigo, permitindo um debate contínuo sobre sua jogabilidade (que significa: sistema, mentalidade e estética). Blogues como Grognardia surgiram como espaço de crítica e reflexão sobre o RPG, o que influenciou fortemente na construção da primeira identidade deste movimento. De maneira bastante direta, a OSR despontou como uma resposta crítica à terceira edição. Embora esses materiais não tivessem mais suporte direto, o acesso aos PDFs da era TSR por versões escaneadas ou republicadas legalmente permitiu um contato inicial com a nova geração. Em adicional, plataformas como DriveThruRPG viabilizaram versões físicas por impressão sob demanda (PoD, do inglês Print on Demand). Isso tudo ocorreu em meio à “guerra de edições” do D&D, com fervorosos embates sobre quais edições são válidas ou não para esse resgate. No começo, o AD&D de Gygax foi a versão mais destacada, pois as edições em caixas do D&D (BX ou BECMI) eram apontadas como um “D&D infantil”, embora houvesse quem defendesse que eram opções mais fluídas e objetivas, atendendo melhor ao interesse geral. Para muita gente o AD&D2e era muito próximo do 3e, não sendo “antigo o bastante”. Eu não vou aqui entrar nesse mérito, pois acredito que ao longo desse texto teremos maior capacidade de olhar para a coisa com toda a sua complexidade. O fato é que nesse tipo de ambiente emergiram novos títulos inspirados, retrocompatíveis e intercambiáveis ao D&D antigo, usando a OGL como ferramenta de rompimento com a WotC e sua 3e. Nasceu assim o BFRPG (Basic Fantasy RPG), de Chris Gonnerman, em janeiro de 2006, que tinha como proposta recriar a edição B/X de 1981. Mas era um material incompleto e com algumas distorções, muito impactadas pelo receio de uma maior proximidade com as regras do D&D antigo e um potencial enfrentamento jurídico com a WotC. Na minha forma de ver a coisa, isso foi uma certa evolução do que foi o trabalho de K&C, com o Hackmaster. Logo em seguida veio um primoroso trabalho de Matt Finch e Stuart Marshall com o OSRIC (Old School Reference and Index Compilation) lançado também em 2006, como um compilado bem fiel ao AD&D1e.

Considero importante abrir uma nota especial para o grande Matt Finch, uma pessoa fundamental para o fortalecimento do movimento OSR. Ele iniciou como RPGista no final dos anos 1970s, com AD&D1e, e foi o responsável pelo rascunho inicial do OSRIC, repassado depois a Stuart Marshal para finalização, edição e impulsionamento. Como advogado (aposentado), Finch mergulhou nos detalhes jurídicos dessa inovadora e destemida incursão de usar as regras do D&D antigo em um novo produto, e partiu dele o reconhecimento da legalidade desse tipo de publicação, permitindo com que OSRIC ocupasse o lugar de destaque como um arrojado produto de altíssima similaridade com as regras da era TSR. Em adicional, em 2008, ele também lançou um importante material introdutório chamado: “Guia Rápido Para o Estilo de Jogo Antigo” (em inglês: A Quick Primer for Old School Gaming), conciso e prático, com objetivo de permitir com que novas pessoas conhecessem sua jogabilidade proposta com o D&D0e, com ótimos exemplos de contraste com a jogabilidade da terceira edição do D&D.

O lançamento de OSRIC permitiu que diversos outros autores acompanhassem a ideia, e logo vieram outras propostas, como Labyrinth Lord (2007, no chassi do BX) de Daniel Proctor, Swords & Wizardrydo próprio Matt Finch (2008, no chassi do 0e) e a republicação completa do BFRPG (2008, também no chassi de BX).

Nasceu assim, a primeira geração da OSR, uma era de “retroclones” do D&D, novos sistemas construídos sobre o chassi de regras do D&D antigo, que permitiam maior acessibilidade, com clarificações, com proposta de melhor diagramação e correção de erros óbvios. Alguns com maior presença autoral, com intervenções mais presentes, outros de forma mais sutil, mas no geral, retrocompatíveis e intercambiáveis entre si e, principalmente, ao D&D da era TSR.    

Mais tarde (já na transição da 5e para a 5.5e), no início de 2023, a WotC tentou substituir a OGL 1.0a por uma nova atualizada e mais restritiva, a OGL 1.1. Essa nova licença impunha cláusulas que davam à WotC mais controle sobre o conteúdo criado por terceiros. Uma forte reação veio da comunidade RPGistica, e essa mobilização acabou promovendo um recuo. Não vou tratar com mais profundidade esse assunto, pois essa treta não tinha como alvo principal o movimento OSR (que poderia sim, sofrer algum efeito colateral). Para isso deixo um vídeo sobre o tema, aqui

No final das contas, o que isso tudo significa? Ao longo dos anos 2000 a OSR foi um movimento que emergiu de forma colaborativa e descentralizada, norteado pelo enfrentamento da terceira edição do D&D com uma proposta de resgate e amadurecimento da jogabilidade do D&D antigo, com liberdade de criar, adaptar e publicar materiais caseiros.

Poderíamos encerrar o artigo aqui. Entendo que este resumo já é suficiente como uma introdução geral sobre o que foi, de fato, a OSR. Mas faço agora um convite para mergulharmos um pouco mais em busca das correlações de tudo isso com uma série de eventos que ocorreram ao longo dos anos 1980s, alterações e incorporações extremamente impactantes que contribuíram em maior ou menor grau para uma transformação do Dungeons & Dragons de um estilo de jogo para uma logomarca extremamente lucrativa.

O que "foi" a OSR?

  Por Quiral Alquimista No ano de 2017 eu assisti a uma aventura ao vivo que era uma divulgação do  Dungeon Crawl Classics  RPG pelo lançame...