Um panorama histórico
Por Quiral Alquimista
Neste artigo apresento a você um panorama geral das principais facetas do Dungeons & Dragons ao longo destes cinquenta e um anos. Trata-se de um breve resumo, pois cada conteúdo será revisitado e aprofundado em outras publicações aqui neste blogue.
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D&D 0e (1974, Dave Arneson e Gary Gygax)
Este é o protótipo não só da série Dungeons & Dragons, mas de toda uma nova linhagem de jogos sem precedentes oficialmente publicados. Por ser o protótipo, é geralmente nomeado como o D&D Original, ou a edição zero (0e). A sua materialização foi um trabalho hercúleo, por impossibilidade financeira de uma encadernação robusta (como um livro), foi produzido na forma de três panfletos, intitulados: Homem & Magia (Men & Magic); Monstros & Tesouros (Monsters & Treasure) e “Aventuras pelo Submundo & Selvagem (The Underworld & Wilderness Adventures). Eles eram distribuídos em uma caixa de papelão rígido, cuja primeira tiragem consistiu em 100 cópias, endereçadas manualmente aos interessados.
D&D Básico (1977, John Erick Holmes)
O neurocirurgião Holmes convenceu Gary Hygax de que o conteúdo do D&D não era bem acessível à novatos, por isso ele recebeu a autorização de projetar uma caixa introdutória, que serviria como porta de entrada tanto para o já publicado D&D 0e, como para a nova edição em produção (AD&D). Esta caixa foi uma revisão, clarificação e resumo do D&D original, vendida como D&D Caixa Básica (D&D Basic set), contendo: um livreto azul de 48 páginas, com regras simplificadas para jogar entre os níveis 1-3, o primeiro conjunto de dados poliédricos da TSR e um livreto com mapas, tabelas de encontros aleatórios e lista de tesouros, que foram substituídas a partir de 1978 por uma aventura, a primeira da série clássica, de autoria de Mike Carr: B1 - Em busca do desconhecido (In Search of the Unknown). Mais tarde, em 1979, essa aventura foi substituída pelo (talvez) mais famoso módulo de aventuras da era clássica do D&D: B2- O Forte na Fronteira (The Keep on the Borderlands).
AD&D 1e (1977-79, Gary Gygax)

Enquanto o D&D de 1974 foi publicado por uma co-participação, a sua versão avançada foi produzida pelo prolífico Gary Gygax. Insatisfeito com a forma como o material original fora apresentado, em partes pela sua estrutura física amadora (embora eu considere super charmosa), organizado em uma “caixa de sapado”, com livretos grampeados e artes simplórias, mas também pelo seu conteúdo, pois não era exatamente o “seu D&D”. Não se tratou de uma mera revisão. Era uma completa releitura, com grande expansão de conteúdo. Esta edição sucessora do 0e foi inaugurada com o Manual dos Monstros (1977), com uma capa dura, colorida, amplamente ilustrado e mais bem diagramado. Em 1978 saiu o Livro de Jogo (Players Handbook) e em 1979 o Manual de Mestragem (Dungeon Masters Guide). Preciso deixar aqui minha nota pessoal de que este é um dos mais importantes livros da história deste jogo, em minha humilde opinião. Obviamente que o anúncio oficial do lançamento do AD&D não incluía um importante ingrediente dessa sopa: o afastamento de Dave Arneson da autoria do material (tudo isso será abordado em outros artigos aqui do blogue, em detalhes).
D&D BX (1981, Tom Moldvay, David “Zeb” Stephen Marsh)

A caixa básica de 1977 fez um sucesso inesperado! À medida que o jogo começou a crescer, foi relacionado, em 1979, ao desaparecimento de James Dallas Egbert III, de 16 anos, estudante da Universidade Estadual de Michigan. Isso foi amplamente noticiado, mas não adequadamente explicado. Investigadores encontraram materiais de AD&D em seus pertences e precocemente (e sem evidências consistentes) foi feito uma conexão do D&D com o caso, o que trouxe atenção nacional ao RPG, até então obscuro da grande mídia. Mas, como escrito no livro: O retrato de Dorian Gray: “a única coisa pior do que falarem de você, é não falarem de você” (Oscar Wilde). A notícia catalisou uma nova era do D&D, e o grande interesse por um público novo fez a caixa azul de Erick Holmes esgotar em todas as prateleiras. Isso fez com que Gary Gygax tomasse a decisão de abrir um novo departamento na TSR, para revisar a caixa básica azul e lançar continuidades mais alinhadas à sua estrutura. Nasceu assim, a linha clássica das caixas do D&D dos anos 1980. O primeiro conjunto consistiu em duas caixas: uma magenta (nova caixa básica, daí o “B”), contendo um livro de jogo, para personagens entre os níveis 1-3, uma aventura (B2), um conjunto de dados e um bloco de fichas. A outra caixa, azul, foi planejada para personagens “Especialistas” (em inglês: Expert, daí o “X”), que continha a expansão para níveis 4-14, com uma aventura da série X, X1 - A Ilha do Pavor (em inglês: The Isle of Dread). A última expansão dessa série nunca foi lançada, idealizada sobre o nome de “Companheiros” (em inglês: Companion, daí o “C”), que era uma proposta para personagens entre níveis 15 e 36, assumindo o papel ocupado até então por NPCs (do inglês Non-Player Character).
D&D BECMI (1983-86, Frank Mentzer)
O projeto original “BXC” foi resetado, passando para as mãos de Mentzer, que revisou todo o conteúdo anterior e o expandiu para cinco caixas: as duas primeiras, basicamente uma revisão das anteriores: uma vermelha, a nova caixa básica (B), e uma azul, a nova caixa especialista (Expert, E), a terceira, "Companheiros" (C), foi fragmentada em duas novas: uma verde, com níveis 15-25, (finalmente lançada como a caixa Companion) e uma preta, para os níveis 26-36 (chamada de “Mestres”, em inglês Master, M), fechando assim um ciclo de níveis 1-36. Mas também foi introduzida uma nova proposta, uma caixa dourada, para personagens imortais (Imortals, I). Nasceu assim a famosa série do D&D em caixas, com a proposta de uma “completa experiência D&D”.
AD&D 2ed (1989, David “Zeb” Cook)
Nos anos 1980 muitos suplementos para o AD&D tinham saído. Eram popularmente conhecidos como “lombada laranja”. Isso levou a TSR (empresa Tactical Studies Rules Inc, que detinha os direitos do D&D) a propor a segunda edição de sua versão avançada, sob responsabilidade de David Cook. Obviamente que o anúncio oficial não incluía um importante ingrediente dessa nova sopa: Gary Gygax foi afastado da TSR em outubro de 1986, e havia um forte interesse em desconectá-lo da autoria do material (isso será abordado oportunamente, em detalhes). A empresa agora estava sob o controle majoritário da empresária Lorraine Dille Williams, e, por isso, pela primeira vez, de forma mais intrínseca, as decisões importantes sobre o jogo não seriam mais tomadas por quem jogava, de fato, mas sim pela mentalidade de executivos. O que foi mostrado nesse palco foi um produto com uma “limpeza de artes” (parte da ideia era projetar no imaginário um jogo de heroísmo e cavalaria, sem aproximações com demônios ou magias sinistras, que ilustravam as capas originais do AD&D), um texto mais amigável ao público jovem (mesmo mantendo o nome “avançado”) e uma reorganização e evolução das regras principais. O que fez sucesso nos suplementos seria incluído na trinca base, bem como ocorreria o descarte do que era subutilizado nos livros da edição anterior. Essa foi a primeira edição trazida para o Brasil em português, e vale acrescentar que uma famosa caixa introdutória chamada “Primeira Aventura” (First Quest) foi lançada para AD&D2ed, contendo regras simplificadas, um livreto básico com aventuras curtas, mapas, fichas pré-geradas e um diferencial marcante: um CD de áudio contendo narrações, efeitos sonoros e músicas com a intenção de auxiliar a criar a atmosfera do jogo.
D&D Rules Cyclopedia (1991, Aaron Allston)
Outra produção refeita sob nova direção foi o compilado das caixas (BECM) do D&D dos anos 1980, revisado e reorganizado em um único livro, com todas as artes internas feitas por Terry Dykstra. Neste tomo você tinha material para jogar dos níveis 1 ao 36, com capítulos sobre a estrutura geral de jogo, preparo de aventuras, mestragem, vasto bestiário e até sobre outros planos de existência. Nos apêndices há um capítulo dedicado a uma visão geral do “Mundo Conhecido” (Mystara), e ainda regras para conversão de personagens para o AD&D 2ed. Não posso deixar de acrescentar que uma outra famosa caixa introdutória, o “D&D Básico” (também conhecido como “D&D caixa preta) foi lançado para esse material. No Brasil, em 1993, essa caixa saiu pela Grow, e muita gente pode conhecê-lo por isso como D&D da Grow”, que continha um livreto de 64 páginas, com sistema simplificado (para níveis 1-5), um mapa de masmorra simples conjunto de dados e miniaturas de papel.
Fim do D&D da era TSR
-----------------------------------------------------------------------------------Início do D&D da era WotC / Hasbro
D&D 3e (2000, Monte Cook, Jonathan Tweet e Skip Williams)

Ao longo dos anos 1990 a TSR tomou várias decisões infrutíferas de negócios, esse caos culminou em um grande endividamento, que culminou com a venda de todos os direitos do D&D 1997 para a emergente empresa Wizards of the Coast, que iniciou um trabalho de reformulação para uma nova edição. Em setembro de 1999, a gigante dos brinquedos e jogos eletrônicos Hasbro comprou, em alta, os direitos da Wizards of the Coast, e foi sob essa gestão que saiu, em 2000, a terceira edição de D&D. A primeira coisa que talvez você se pergunte é: por que esta é chamada de terceira edição? A reposta objetiva é que ela foi desenhada a partir dos “escombros” da segunda edição do AD&D. Por uma questão comercial, optou-se por remover a palavra “avançado”, pois entendia-se que isso não seria amigável à iniciantes. Outro ponto relevante dessa decisão é que a série clássica das caixas do D&D (compiladas na RC de 1991) foi descontinuada. Esta terceira edição foi desenhada em uma cima de uma proposta que, na época, me pareceu sensacional: tudo no jogo se resolve da mesma maneira (discutiremos isso oportunamente). Você rola um d20, soma modificadores, e avalia se o resultado iguala ou supera o número alvo (chamado de “Classe de Dificuldade”, CD). Pela primeira vez em sua história (e isso foi intencional), o sistema de D&D não era mais intercambiável a seus antecessores. Junto desse lançamento, a WotC fez uma abertura do Documento de Referência do Sistema (do inglês System Reference Document, SRD) na forma de uma licença aberta de jogos (do inglês Open Game License, OGL), que permite que qualquer pessoal, editores comerciais ou não comerciais, produzam conteúdo usando o chassi da terceira edição de D&D sem pagar por o uso da propriedade intelectual associada. A intenção era que muita gente mordesse essa isca e começasse a produzir conteúdo (profissional ou amador) sobre D&D 3e. Nascia assim uma enxurrada de materiais alinhados ao que ficou conhecido como “Sistema d20” (do inglês d20 system). Embora essa ideia tenha sido de grande sucesso comercial, ela teve alguns efeitos colaterais. Um deles (que certamente não fizeram cosquinha na Wotc/Hasbro) foi o surgimento do movimento OSR (do inglês Old School Revival, que tratarei em outro artigo aqui no blogue, adequadamente). Em 2003 uma revisão da estrutura da terceira edição foi necessária, e foram relançados os livros da trinca básica como “D&D 3.5”.
D&D 4e (2008, Rob Heinsoo, Andy Collins e James Wyatt)
Os anos 2000 foram marcados por uma série de fatores, um importante elemento foi a popularização da internet e de jogos digitais. Foi nessa década que se consolidou dois estiloso de jogos online famosos: os “MMOs” (do inglês Massively Multiplayer Online, cuja tração é Multijogador Massivo Online), que permitem com que milhares de jogadores interajam entre si em um ambiente virtual compartilhado, e os “MOBA” (do inglês Multiplayer Online Battle Arena, cuja tradução é Arena de Batalha Online Multijogado), que se consiste em uma arena virtual de combate em equipes. Mas por que diabos estou falando disso? Ora, muito simples, a WotC, que já estava sob controle da Hasbro desde 1999, era cada vez mais impactada pela mentalidade financeira da gigante de jogos, e foi percebido uma oportunidade de nadar nessa onda, que poderia transformar o RPG eletrônico no RPG de mesa (ou seria transformar o RPG de mesa em um RPG eletrônico?). Mas muito mais que isso, isso permitia fortalecer suas vendas com um sistema que exigia uso de maneira intrínseca de miniaturas, mapas e diversos acessórios. Isso era, obviamente, mais uma criação de “demanda artificial", gerando necessidades que antes não eram percebidas com a intenção de criar um novo público e expandir seus negócios. Mas tenho que dar alguns créditos: 1) a proposta de equilibrar as classes (inexistente na terceira edição) foi realmente cumprida (embora equilíbrio de classes não seja, necessariamente, uma regra para um jogo bom, diga-se de passagem, mas trataremos disso em outros artigos); 2) Foram lançadas em conjunto ferramentas digitais, como o D&D Insider, algo à frente de seu tempo. Junto disso foi também criada uma OGL específica para a quarta edição, muito mais restrita e predatória, o que gerou um rompimento com várias empresas parceiras (que cresceram bastante com a produção adjacente e suplementar para a terceira edição com sua OGL), como a Paizo (que lançou o Pathfinder) e a Goodman Games (que lançou o DCC-RPG).
D&D 5e (2014, Mike Mealrs e Jeremy Crawford)
Não é possível afirmar que a quarta edição tenha sido um fracasso financeiro, mas podemos considerar, com alguma segurança, que o seu lançamento trouxe para a WotC/Hasbro algumas dores de cabeça. 1) A sua OGL mais restrita afastou empresas outrora parceiras transformando-as em concorrentes; 2) O movimento OSR ganhou muito mais força, levando muita gente para edições antigas ou derivadas do D&D clássico; 3) Muita gente simplesmente preferia jogar MMO ou MOBA ao invés de sua emulação na mesa. Isso fez com que o departamento de RPG repensasse seus movimentos. Em 2012 foi organizado um grande grupo de consultoria para a projeção da quinta edição do D&D, e parte dessas pessoas tinham produções que interagiam com a própria OSR. Obviamente, não corre nas veias da quinta edição o estilo vintage de RPG, mas certamente ela tem algumas inspirações na era TSR. Enquanto muita gente olhava para frente em busca do que poderia fazer de novidade, a quinta edição foi lançada sob a mentalidade de se olhar para trás e ver o que tinha sido feito de bom (principalmente para o AD&D2e). Esta quinta edição do D&D se tornou o maior sucesso financeiro da história do RPG, com um faturamento total que supera todas as edições anteriores juntas. Uma peça-chave para isso foi também o momento: A partir da metade de década de 2010 a nossa relação com a internet mudou. Enquanto eu vivi (fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000) uma época em que você “entrava na internet”, a partir dos anos 2010 foi se tornando comum “viver online” com a popularização dos celulares inteligentes (smartphones). Foi nessa década passada que transmissões (streamings) de mesas de RPG iniciaram, sendo a mais famosa delas: a Critical Role, que contribuiu diretamente para o sucesso da quinta edição (para o bem e para o mal, diga-se de passagem, mas tratarei disso em outro artigo específico). Obviamente, a quinta edição também impulsionou o sucesso da Critical Role, e não sei dizer, ao certo (nesse caso), quem veio primeiro: “o ovo ou a galinha”. Diversos outros produtores de conteúdo, inclusive brasileiros, tiveram grande impacto em criar um novo público de RPG bem como resgatar antigos jogadores.
Essa é, até o momento, a mais estável e duradoura das edições da era WotC/Hasbro.
Janeiro de 2025
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ANEXO - FLUXOGRAMA SIMPLIFICADO DAS EDIÇÕES DO D&D
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Muito bom! Eu sempre fico confuso quando tento fazer essa relação de edições, capas e datas! E já que a matéria é sobre as diversas variações/revisões/expansões, acho que caberia ter adicionado as datas e capas do D&D Essentials ("4.5"), D&D 3.5 e D&D 2024 ("5.5") no fluxograma cronológico.
ResponderEliminarSalve Mike, seja vem vindo ao blogue!!!
ResponderEliminarValeu d+ pelo retorno. Eu optei por não incluir as versões do tipo ".5" para deixar a imagem mais limpa e de fácil vizualização. A única caixa que deixei para além das edições foi a do Holmes, uma vez que catalisou toda a série dos "D&Ds em caixas"!
Eventualmente vou pensar se faço uma arte incluindo esses aditivos :)
Abraço!!!
Ah, sim... É porque na minha visão de leigo da história do Dungeons & Dragons, o BX, BECMI (esse tá grafado errado no fluxograma tá "BEMIC") e Cyclopedia foram todos um tipo de ".5" da época, hehehe! XD.
EliminarOi Mike. Sua visão não é de leigo :)
EliminarDe certa forma eu percebo que até o BX poderíamos considerar sim, algo como "0.5". Mas as caixas BECMI já possuem conteúdo significativamente diferente para considerarmos, de fato, uma nova edição. São formas customizadas de destrinchar a coisa, que pretendo tratar aqui no blogue oportunamente de maneira específica.
Sobre "BEMIC" na arte do fluxograma, agora que vi rs
Vou editar assim que tiver um tempinho ! Valeu