quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

MESA ABERTA - Método Ars Ludi













Por Quiral Alquimista

Há diversas formas de mesas abertas em RPG, o que vou apresentar aqui segue o método que eu e alguns amigos chamamos por aqui na terra dos papagaios de Ars Ludi, publicado por Ben Robbins no blogue homônimo em outubro de 2007. Ele criou essa maneira de conduzir sua campanha nos anos 2000, que durou cerca de de dois anos usando D&D 3e. O que veremos neste artigo são os parâmetros gerais que eu preparei a partir do modelo original Ars Ludi:

 
MOTIVAÇÃO

Basicamente há quatro propósitos para você considerar montar sua própria mesa aberta:

> Mestrar uma campanha: o D&D antigo é projetado para campanhas de média ou longa duração, com sessões semanais por meses ou até anos. Se você joga toda semana por um semestre inteiro (seis meses), você jogará aproximadamente 24 sessões. Há campanhas que duram anos, alcançando e ultrapassando a marca de 100 sessões. Uma mesa aberta é uma ótima oportunidade para você jogar uma campanha longa caso seja pouco provável que consiga um grupo fechado para isso.  

> Cronograma flexível: uma mesa aberta acomoda pessoas com regularidade de jogo diferente na mesma campanha. É perfeitamente possível ter alguém que só pode jogar uma vez por mês jogando junto de alguém que joga toda semana. Em adicional, o método é bem alinhado com alterações de datas e horários. 

> Participantes múltiplos: uma mesa aberta possui várias pessoas com nível de engajamento diferente. Há quem apareça para fazer apenas uma degustação por curiosidade, bem como há quem deseje jogar toda sessão. Isso não se torna um problema em uma mesa aberta, pois o método é perfeitamente alinhado com interesses e possiblidades diferentes. Além disso é uma ótima oportunidade para expandir horizontes e conhecer pessoas diferentes.

> Dinâmica reversa: em uma mesa aberta não há espaço para apatia. Se alguém ficar esperando algum enredo para seguir, o tempo da sessão passará e a incursão será infrutífera, e isso não é culpa sua. Quem mestra prepara um módulo e reage às abordagens de personagens, o que significa que participantes devem assumir o protagonismo do ritmo do jogo e seu desenrolar. Obviamente que isso pode (e em minha opinião deve) também ser usado em campanhas clássicas, mas em uma mesa aberta isso é uma regra fundamental para seu bom funcionamento.

MÉTODO

A seguir apresento os “dez princípios” que considero como essenciais em uma mesa aberta.

1. Módulo de jogo:
essa é a primeira coisa a ser preparada. Entenda que um módulo aqui é caracterizado por um conjunto de elementos que oferecem liberdade para participantes interagirem com o mundo de forma não linear. Não há uma prescrição de uma história ou qualquer roteiro a ser seguido, mas sim há um material que permite uma infinidade de opções e que sofrerão impacto a partir das abordagens de personagens. Quando se preparar um módulo, significa então que você irá elaborar locais, criaturas, facções, eventos e uma agenda (expectativas, objetivos e diretrizes). Isso implica em total agência (liberdade, impacto e decisão informada) dentro dessa proposta de jogar.

2. Sessões flexíveis:
os encontros para jogar são anunciados sob demanda sem um rigor pré-definido de dia ou horário. De forma geral considero importante que quem for mestrar apresente pelo menos uma opção geral, mas nada impede que chamadas extras ou alterações surjam. Há bastante liberdade para oferecer mesas em dias das e horários não convencionais, tendo como principal pré-requisito sua própria disponibilidade.

3. Campanha persistente e episódica:
após preparar o módulo e iniciar o jogo o resultado ocorrido nas sessões anteriores impactam na sessão em curso. O acúmulo de informações servirá como base de referência para novas decisões, e diversos eventos, como criaturas que vivem e caçam em alguma região, alianças e conflitos de facções ou novos locais a serem explorados serão impactados por cada nova sessão de jogo e seus acontecimentos, o que resultará em uma experiência coletiva dinâmica e interconectada que lançará nova luz a outros locais e desencadearão todo um novo fluxo de jogo emergente.

4. Grupo flutuante:
a mesa funciona de maneira dinâmica e flexível, o que significa que não há um grupo de pessoas fixas na campanha. Cada mesa aberta deve estruturar sua própria fórmula específica para definição de como esse grupo será formado, mas há pelo menos três propostas bem funcionais:

a) abrir uma chamada e fazer um sorteio
b) definir por ordem de inscrição
c) deixar com que participantes montem grupos e agendem uma sessã

NOTA: é indiciado que se crie uma regra particular para impulsionar rodízio, pois embora seja excelente que um pequeno coletivo engaje bastante com a mesa, é importante sempre manter o espírito da “mesa aberta” vivo. Ao mesmo tempo, aquela turma mais participativa pode combinar uma data especial para incursões seletivas.

5. Exploração do desconhecido:
aventurar-se não é uma profissão comum ou segura, de forma que está na mão de personagens controlados (PCs) o objetivo de arriscar suas vidas na esperança de fazer fortuna. O acúmulo de informações e expansão do conhecimento deve ocorrer prioritariamente (ou exclusivamente) por meio de personagens. Obviamente que podem existir facções concorrentes, e é possível que outros grupos de aventuras de NPCs disputem incursões, mas coletar essas informações deve sempre acontecer diegeticamente. Em adicional o foco do jogo deve ser prioritariamente nos ermos, de forma que seu marco seguro (cidade) deve ser simples, sem grandes tramas urbanas que possam desviar da meta, que é um jogo de exploração.

6. Trabalho coletivo:
deve haver intencionalmente perigos assimétricos e grandes riscos de letalidade. O propósito disso envolve fortalecer a necessidade de colaboração, intensificar o impacto de escolhas difíceis entre batalhas que valem ou não o risco e aprimorar a capacidade de interação ficcional por observação, análise adaptação.

7. Gestão da informação:
é essencial que participantes tenham possiblidade de acessar facilmente o acúmulo de conteúdo das sessões para permitir racionalização da evolução da campanha. Para isso é importante estruturar uma forma funcional de contato com essas informações, que apresento, de modo operacional, em duas formas: relato de incursão e mapas compartilhados.

Relato de incursão: participantes podem preparar coletivamente (ou anunciar uma pessoa) responsável por organizar um resumo sobre a incursão. Cada mesa aberta terá um coletivo de pessoas com gostos e formas diferentes de interagir com isso, e obviamente ocorrerão customizações dessa atividade. Há quem transforme os relatos em contos de fogueira ou uma poesia, há quem prefira um resumo objetivo na forma de uma lista com pontos-chave. O mais importante é atingir a principal finalidade que é compartilhar a informação. 

Mapas compartilhados: é fundamental a preparação de alguns mapas de jogo criados por participantes durante as incursões que servirão como fonte de referência para planejamento e orientação em novas missões ao longo da campanha. Para uma campanha vintage há pelo menos dois tipos:

a) o mapa da região, que se trata de um esboço geral com apontamento de diferentes áreas, seus tipos de terrenos, marcos de jogo e informações gerais
b) mapas de dédalos, que são mapas de subterrâneos ou semi-subterrâneos onde geralmente estarão os mais significativos objetivos do jogo (tesouros).

NOTA: Esses mapas da mesa não têm a obrigação de precisão, e não é papel de quem mestra fazer qualquer correção não-diegética. O importante é que possam funcionar como referência comum, o que reforça o espírito de que jogam o mesmo jogo, e tenha possiblidade de refinamentos e expansões ao longo da campanha.

8. Mundo dinâmico: para a simulação de um mundo vivo é extremamente prático o uso de tabelas aleatórias. Cada tabela representa uma área específica, como uma mata ou um pântano, que expressam em suas opções um resumo dos desafios daquele bioma fantástico. É interessante que essa tabela contemple opções para além das criaturas perigosas da área, sempre alinhadas à verossimilhança, como possíveis doenças, viajantes ou um combinado de encontros (uma entrada que resulte em rolar duas vezes e criar uma situação de duas entradas ocorrendo ao mesmo tempo, como uma alcateia de lobos caçando animais de rebanho), uma forma infalível de gerar encontros interessantes. Também faz parte dessa simulação ter uma entrada que aborde encontros com criaturas de áreas adjacentes, que podem estar passando por ali naquele momento ou, inclusive, seguindo o grupo de personagens. Uma customização interessante ainda é combinar o encontro aleatório com a reação, o que trará ainda mais profundidade nas diversas possiblidades de um mundo dinâmico. Uma reação que resulte em amigável ou vulnerável, por exemplo, pode significar que a criatura acabou de se alimentar, ou está muito ferida, enquanto uma reação hostil pode ser usada como resultado de uma criatura em caça (do próprio grupo, no caso). 

9. O ciclo da incursão: como se trata de sessões episódicas em uma campanha persistente, não é funcional que personagens encerrem a sessão nos ermos. Para esse modelo funcionar bem geralmente se aplica uma regra do tipo “metajogo” que envolve uma dinâmica cíclica em que personagens sempre devem iniciar e encerrar a sessão em marcos seguros. Isso significa que um bom planejamento com controle de tempo e capacidade de adaptação são fundamentais. Arriscar estender uma exploração faz parte desse processo, bem como suas consequências genuínas. Caso o horário da sessão “estoure”, assume-se que participantes perderam o controle das decisões de personagem naquele tempo, e o resultado não será jogado de fato, mas sim simplificado em uma mecânica. Em algumas mesas há a “regra de morte”, assim assume-se que PCs morrem. Há outras regras particulares que podem ser abordadas para resolver isso. No meu caso, uso uma abstração em uma jogada que chamei de “dado de risco”.

 10. Evolução do módulo: quando há interferência em um sistema, seja ambiental ou na relação entre criaturas, mudanças relevantes podem ocorrer em sua cadeia interconectada. Para ilustrar cito um exemplo simples: se personagens construírem um acampamento avançado em um local e começarem a caçar animais de rebanho que por ali vivem, pode ocorrer uma competição com predadores, com chance de que ataquem esse acampamento ou se afastem da área. Essas transformações alinhadas á verossimilhança são importantes para reforçar a proposta de campanha persistente e impacto da ação de personagens no jogo.   


EXPRESSÃO POPULAR

Quando Ben Robbins publicou seu método em seu blogue, ele cunhou um termo que acabou ficando bem famoso, chamado "MARCHA OESTE” (West Marches). Na prática ele usou esse termo pelo fato que em sua campanha havia o espírito “vá para o oeste, jovem”, de forma que o jogo se passava em uma região fronteiriça no limite do reino, tendo como marco seguro uma cidade fortificada como posto avançado mais distante da civilização e da lei. Personagens eram incursionistas aspirantes que começavam o jogo nesta cidade, com foco de aventuras na direção de um oeste selvagem e perigoso.

Eu confesso que não gosto da expressão “marcha oeste”, por pelo menos dois motivos:

> Meu desgosto com o termo envolve sua conexão com a marcha para o oeste norte-americana e brasileira. Ambos os eventos envolveram uma carnificina de povos originários, um massacre sangrento que impulsionou o avanço da “civilização” para o oeste. Sei que talvez alguém possa alegar que "é só um jogo", e que, de fato, isso não vai resolver nenhum problema real, e que, certamente, "há diversos outros elementos em D&D carregados de colonialismo". Embora sejam argumentos que podemos discutir sobre, acredito que pequenas mudanças na linguagem contribuem para um ambiente mais inclusivo e respeitoso, e optei por dar esse passo.    

> Honestamente embora essa expressão seja bem conhecida no mundo RPGístico, não acho que seja um bom termo. Um jogo de exploração pode ter como foco incursões focadas em subterrâneos místicos, ou ainda para outros sentidos, como para o norte ou sul. Não acredito que seja uma escolha de título alinhada à proposta.  

Como era interesse nosso (quando falo “nosso”, incluo aqui um grupo de amigos que tocam mesas abertas e compartilham de ideias parecidas) manter uma referência ao autor do formato, optamos por usar “Ars Ludi” (nome de seu blogue).

 
CURIOSIDADE

Há sólidas evidências de que esse modelo de jogo já existia no RPG setentista, mesmo antes do lançamento do D&D de 74. 

Cito alguns exemplos relevantes.

> Blackmoor
: a estrutura da campanha não só continha o caldo primordial do D&D, como também tinha vários elementos típicos do método mais tarde estruturado por Ben Robbins. A campanha possuía muitos participantes que jogavam sessões episódicas, mas com resultados persistentes, inclusive com modelo multi-mestre.  

> Greyhawk: como registrado no livro "O Império da Imaginação", as sessões mestradas por Gary Gygax durante o desenvolvimento do D&D (pré-74) ocorriam com grupos diversos, inclusive com sessões apenas com seus dois filhos (Ernie e Elise) em dias e horários diversos (em alguns momentos, diariamente) em seu porão, com todos os resultados persistentes. Ernie e Rob Kuntz eram tão frenéticos que acabaram evoluindo de nível com seus personagens (Tenser e Robiliar, respectivamente) muito mais rápido que a média, o que serviu de estímulo para Gary Gygax projetar a sinistra e letal "Tumba dos horrores" para desafiá-los. 

No D&D original há uma passagem indicando que esse jogo foi projetado para grupos de 4-50 pessoas, mas que cada DM não deveria assumir mais do que 20 participantes por sessão.


Se esse método está nas raízes do D&D, tanto em
Blackmoor  como Greyhawk, por que ele sumiu?

Aqui caímos em um espaço totalmente especulativo, mas não quero deixar de dar meu palpite: imagino que, com o tempo, foi se tornando mais comum coletivos de jogos cada vez menores e caseiros, o que resultou no que ficou conhecido como "campanha clássica", que envolve você montar um grupo de algumas pessoas (geralmente 3-6) e jogar uma longa e contínua campanha por meses ou anos. O grande feito de Ben Robbins foi então resgatar e refinar esse formato setentista, criando uma modelo compreensível e facilmente replicável. 

TUDO É XP

 
XP INDICADO (mergulhe ainda mais)
Ao longo do texto eu deixei linques diretos para o conteúdo abordado, além de sempre indicar importantes livros sobre a historiografia do D&D, que são minhas maiores fontes de estudo, registrados em nossas referências.

Para este artigo deixo aqui algumas referências específicas:

1. Artigos originais sobre o método de Ben Robbins: Grand Experiment: West Marches

2. Vídeo no canal: O que é West Marches? Uma reflexão sobre nome e jogabilidade 

3. Podcast Café com Dungeon: West Marches, rodando o seu

4. Nosso Notion sobre a mesa aberta que mestro: Terra de Gigantes

7 comentários:

  1. Mestro nesse modelo presencialmente a alguns anos e tem sido uma experiência ótima. Vc acaba conhecendo muita gente maneira e cada um dando seu toque no cenário q vai se desenvolvendo coletivamente.

    Eu só não aderi a necessidade de voltar para o ponto seguro no fim das sessões, a sessão seguinte segue de onde o grupo parou.

    Um ponto importante no item gestão de informação é criar uma lista de rumores/missões, para assim facilitar consultas e decisões de futuras incursões, sem ter o risco dessas informações ficarem perdidas entre os relatos de sessões. Pode até ser organizado pelo DM, a partir das informações que os jogadores conseguiram em jogo.

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    1. Oi Rafa, desculpe a demora na resposta. Tive uns dias muito cheios!

      Muito legal saber que também joga assim!

      Sobre rumor/missões, eu entendo que os rumores coletados no jogo podem (e devem) ser agrupados no relato da incursão. Em experiência pessoal achei que ficou muito inflado registrar isoladamente os rumores de jogo.

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  2. Saber sobre a história desses grupos de hobistas que existiam no tempo das campanhas clássicas (Greyhawk, Blackmoor, etc) é sempre algo que me fascina! Tenho muita vontade de um dia criar um grupo assim!

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    1. Esse é um dos objetivos desse blogue! Fomentar essas ideias e mostrar caminhos que possam torná-la possível S2

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  3. Muito bom ver a popularização das mesas abertas. Queria ter conhecido antes, principalmente na época da pandemia.

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    1. E eu não curtia muito
      Para ser sincero eu ainda me dou melhor com a mesa fechada, mas a mesa aberta traz possiblidade impossíveis no modelo tradicional !!!

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