quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

D&D gênese

Por Quiral Alquimista

Há alguns anos eu fiz parte de um coletivo de RPG muito legal chamado “mundos colidem”. Por uma série de peculiaridades paramos com as publicações, mas ainda guardo com carinho a convivência, as experimentações e consegui salvar alguns textos. O que apresento aqui é um artigo que fiz à época, agora revisado, sobre os diversos ingredientes que compunham o caldo primordial do D&D de 1974, te convido a incursionar comigo nos dédalos dessa história!


Chamada para aventura

Embora seja muito comum lermos ou ouvirmos por aí que D&D “nasceu” do Chainmail, um jogo de estratégia (wargame) de autoria de Gary Gygax e Jeff Perren, de 1971, penso que seja uma explicação exageradamente reducionista, por não leva em consideração toda a complexidade emergente que culminou no material de 1974. Há muitos andares neste dédalo, recheados de caminhos labirínticos e salas inexploradas, que vamos começar a investigar juntos!

Primeiro andar

Na incursão por esse submundo antigo e pouco conhecido das raízes de nosso jogo, eu diria de imediato que é mais assertivo definirmos que o D&D surgiu de Blackmoor, não do Chainmail. É claro que é possível argumentar que Blackmoor usava as regras do Chainmail, o que obviamente é válido, mas as galerias deste RPG primordial são tortuosas e complexas, para compreendê-las um pouco melhor vamos vascular suas salas.

Sala 1 - Castle & Crusade Society: ao final dos anos 1960s havia um coletivo de pessoas que fazia parte de um grupo chamado Castle & Crusade Society, e nessa experiência criaram um grande cenário em conjunto, chamado “Grande Reino” (Great Kingdom) onde cada grupo de pessoas ficava responsável por um domínio. Dave Arneson conduzia campanhas napoleônicas ao norte, e foi ali que ele começou a explorar com mais detalhes o um mini-cenário peculiar, que mais tarde se tornaria Blackmoor. As diversas sessões de jogo contínuas e persistentes do RPG, processo que chamamos de “campanha”, vem em grande parte desse estilo. Nos materiais do D&D vintage a gente pode encontrar regras para personagens conquistarem títulos e terras, fazerem alianças com outros reinos, e há, inclusive, suplementos que trabalham batalhas em massa, domínios e uso de armas de cerco. Tudo isso tem uma base de referências das campanhas napoleônicas.


Sala 2 – Braunstein e a projeção em primeira pessoa: nesse mesmo período, Dave Arneson jogou campanhas nas mesas de David Wesley, chamada de Braunstein, uma experiência de jogo investigativo em primeira pessoa numa cidade fictícia alemã no período Napoleônico, desenvolvido a partir de uma combinação de três referências principais:

  • Strategos (Totten, em 1880)
  • The Compleate Strategist (J. D. Williams)
  • Conflit and Defense – A general Theory (Kenneth Boulding)

 


Destaco o Strategos, um jogo de estratégia (wargame) secular, desenvolvido em 1880 por Charles Totten (professor de táticas miliares do exército americano) que trazia um estilo de jogo de guerra “aberto” (Free Kriegsspiel), com a proposta de um juiz imparcial (conceito desenvolvido por Julius von Verdy na década de 1870). Essa é a principal estrutura de referência para o desenvolvimento de jogar como alguém que “mestra o jogo” (referee)! Segundo relatos do próprio Dave Arneson, o primeiro “mestre de jogo” da história foi David Wesley, em Braunstein.

Existe um relato no documentário “Secrets of Blackmoor” que me marcou sobre a “experiência RPG”. “Não foi a grande maquete do castelo, nem as miniaturas que estavam ali em cima de mesa, foi a descrição daquela fumaça cintilando que me pegou”. Essa foi uma grande quebra de paradigma que vivenciaram pela primeira vez, quando Arneson descreveu o grupo ali sentados à beira de uma fogueira, com uma fumaça cintilando levemente em direção ao norte surpreendeu e engajou rapidamente a galera, pois jogar que conheciam era o de olharem para as peças vistas de cima, miniaturas de guerra, tabuleiros, mas nunca haviam se sentidos projetados de maneira inovadora dessa maneira, em primeira pessoa. E isso Arneson havia trazido das mesas de Braunstein.

Sala 3 – Strategos N e evolução de personagens: David Wesley publicou um material chamado “Strategos N”, desenvolvido a partir do Strategos, e nessas mesas (em que Dave Arneson participava) começou a surgir as experiências de desenvolvimento de personagem a partir dos acontecimentos do jogo. Um exemplo marcante foi um general francês, que recuou e sobreviveu a algumas batalhas, perdeu a perna, mão e um olho, e ficou famoso por usar perna de pau, mão de gancho e um tapa olho pirata. O sentimento de personagens com peculiaridades, que ganham fama por isso, possuem desejos e sofrem consequências dos resultados do jogo ganhava cada vez mais destaque.

Sala 4 - Arbitragens e combates mortais: curiosamente Dave Arneson foi a primeira pessoa a perder personagem nessa experiência anciã de RPG com Braunstein. A partir de um conflito com um colega de jogo, eles decidiram duelar, o juiz (Wesley), não tinha regras para combate naquele momento, mas apresentou uma proposta de arbitragem sob demanda (ruling), negociou com os envolvidos a forma de resolver aquele conflito e estruturam assim uma mecânica para solução do duelo. O personagem de Dave Arneson perdeu essa disputa, mas esse estilo de negociar arbitragem e a possiblidade de perder personagem e o jogo continuar deixou uma semente.

Sala 5 – Chainmail com suas regras e a fantasia: uma série de circunstâncias influenciou Dave Arneson a usar o suplemento de Chainmail em suas mesas, uma delas foi a busca por uma estrutura mais consistentes para resolver combates. e Neste material há regras para combate com miniaturas na escala 1:1, o que foi muito oportuno para somar às experiências com Braunstein e combinar com a estrutura de campanhas feitas com Castle & Cruzades no “Grande Reino”. Obviamente que toda a temática de batalhas fantásticas do suplemento do Chainmail ajudou a repaginar organicamente o cenário que originalmente tinha pegada histórica para ir se transformando no mini-cenário fantástico de Blackmoor.

Um novo nível neste dédalo

Em 1972 Dave Arneson mestrou uma sessão de Blackmoor para Gary Gygax e seu grupo em Lake Geneva, que explodiu a mente da galera (já contei isso aqui), mas vou apresentar de outra maneira: como eles já haviam colaborado em outros trabalhos, a parceria mais importante de suas carreiras começava ali. Dave Arneson entregou um manuscrito (dentro do que eu encontrei, confuso e de difícil compreensão) como “produto bruto” para Gary Gygax desenvolver uma campanha similar nomeada Greyhawk, ambas as campanhas correriam em paralelo com trocas de informações e refinamento para chegarem no que seria o “Jogo da Fantasia” (Fantasy Game), nome temporário do D&D.

Gygax começou seu frenético trabalho para organizar, ampliar e refinar tudo em um produto comercialmente aceito. Com mesas diárias e incrementando diversos ingredientes novos, ele evoluiu significativamente o conteúdo a partir de sua experiência. Ele era autor de vários materiais, como jogos de batalha naval, jogos de estratégia (o próprio Chainmail) e suplementos de Diplomacy, (algumas em parceria com Dave Arneson, inclusive). Essa XP e grande diligência foram fundamentais para dar continuidade no trabalho. Vamos explorar um pouco dessas novas salas!

Sala 6 – negociações e o jogo Diplomacy: uma outra referência importantíssima foi jogo de tabuleiro Diplomacy, criado por Allan Calhamer e publicado em 1959, que é estruturado em uma Europa no período da primeira guerra mundial (1914). Jogo que foi, inclusive, publicado no Brasil pela Grow, com o nome de 1914, O Jogo da Diplomacia. Ele possui uma incrível estrutura de fases, que envolve a fase de negociações, onde os jogadores constroem alianças, debatem estratégias, trocam informações ou até disseminam mentiras. Depois vem a fase de movimentos, onde se concretiza as reais jogadas de cada exército, o que influenciou fortemente na organização dos turnos de exploração e rodadas de combate do D&D. Embora Dave Arneson tivesse desenvolvido um modelo para mestragem da exploração pelas masmorras de Blackmoor, foi em Greyhawk que Gygax refinou isso de forma mais compreensível. Outro elemento fundacional desse jogo de tabuleiro para a forma de jogar D&D foi o modo como funcionam as suas negociações, tudo pelo diálogo e crença na palavra de cada participante, isso culminou na forma dos diálogos que ocorrem entre PC e NPC no D&D original.

Sala 7 - A matriz de combate com d20: para definir acerto versus Classe de Armadura Gygax alterou o modelo do Chainmail para um chassi inspirado no jogo Tratics (tem artigo aqui sobre isso).

Sala 8 – Magia Vanciana: embora muitas magias já estivessem registradas no Chainmail, Gygax adicionou diversas outras, que vieram de livros e revistas, como dos quadrinhos da Marvel. Cito o exemplo da magia “O escudo de Seraphim”, usada pelo Doutor Estranho (1966), que inspirou a magia “escudo”. Mas muito mais do que montar todo um arsenal de possiblidade mágicas do jogo, era preciso criar uma regra para seu funcionamento. Foi a partir da literatura de Jack Vance (daí o nome: magia vanciana) e seu “mundo moribundo” (Dying Earth) que Gygax encontrou uma maneira simples e funcional baseada na capacidade de memorização e conjuração.  

Sala 9 - Outodoor Survival e a HEXploração: a dualidade entre um marco seguro e um ponto de aventura precisava ser expandida. Gary Gygax percebeu que havia espaço de jogo nos arredores de uma vila ou local de aventuras, em explorações ou mesmo em viagens, e encontrou a solução em um jogo de tabuleiro de sobrevivência nos ermos. No livreto da caixa original "aventuras pelo submundo e selvagem" (The Underworld & Wilderness adventures) há um indicativo para uso das regras desse jogo de tabuleiro de forma complementar ao D&D quando for abordar esse tipo de proposta. Obviamente mais tarde isso foi organizado em produtos próprios da TSR, mas esse é um claro vestígio de referência direta.

     
Sala 10 - A ambientação:
os co-criadores do D&D original estruturam um cenário de fundo a partir de diversas referências fantásticas, transformando-o em um gonzo que acomodava proposta de fantasia clássica, fantasia antiga, espada & feitiçaria e horror gótico. Tudo isso veio basicamente da literatura pulp e de filmes. Eu não vou me aprofundar muito aqui neste artigo, mas tem um outro artigo aqui no blogue que interage super bem com esse tema (D&D para além da marca).  

Tudo isso foi se alinhando com muitas texturas, que ganharam outros sabores aos temperos de toda uma comunidade que foi se formando no começo dos anos 1970. Acredito que a partir desse texto seja razoável avaliarmos que o D&D original surgiu de uma longa jornada, com diversas referências diferentes para muito além de só o Chainmail. Este é um material importantíssimo, de fato, que merece um dia um artigo específico aqui no blogue, mas nem de longo é possível resumirmos toda a construção fundacional do D&D de 1974 apenas neste material. Certamente há outras salas e andares para explorarmos neste submundo fantástico do D&D original, salas desconhecidas, passagens secretas e alguns locais que precisamos revisitar com mais cuidado. Faremos isso tudo ao longo de nossas próximas incursões!    

TUDO É XP


XP INDICADO (mergulhe ainda mais)


Ao longo do texto eu deixei linques diretos para o conteúdo abordado, além de sempre indicar importantes livros sobre a historiografia do D&D, que são minhas maiores fontes de estudo, registrados em nossas referências.

Para este artigo, não poderia deixa de agradecer ao meu grande amigo Rafael Massuia, que desbravou um importante XP dentro dessa visão Arnesoniana do RPG, inclusive pude participar de algumas de suas mesas no estilo "FKR". Recomendo fortemente alguns conteúdos em que ele esteve envolvido:

1. Seu blogue Masmorreiros.

2. Duas lives que fiz com ele, primeira aqui e segunda aqui.

6 comentários:

  1. Garimpei a internet mas não consegui achar as regras desse Strategos, fiquei curioso sobre o jogo!

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    1. Procure também pelo nome do autor Charles A. L. Totten

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    2. Oi Mikey, acabei não vendo seu comentário aqui. Encontrou?

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  2. Gygax foi meio que um Dr. Frankenstein. Junto vários jogos, organizou anotações e criou seu monstrinho.

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  3. Acabei descobrindo só dias atrás que você tinha começado o blog. Vou deixando aqui o meu "presente!" como um aluno em sala de aula. Parabéns, Quiral. É sempre uma boa XP ouvir/ler o que você tem a dizer sobre RPG.

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