terça-feira, 8 de julho de 2025

O Que é Jogabilidade? Uma Análise Vintage do D&D antigo

Por Quiral Alquimista

Jogabilidade é a impressão digital de um jogo, é sua essência, engloba a interação entre pessoa-jogo. Recentemente eu escrevi aqui um artigo: “O que foi a OSR”, e nele apresentei o forte impacto que a terceira edição do D&D trouxe sobre a jogabilidade D&D. Pois muito bem, convido você agora a mergulhar nesse conceito, afinal de contas, o que é jogabilidade e como isso é estruturado para o D&D antigo?

 ETIMOLOGIA

Vem da aglutinação de Jogo (do latim: jocus) + habilidade (do latim: habilitas).

Na evolução do latim popular, jocus suplantou ludus como designação principal para atividades recreativas - traço etimológico que permanece nas línguas românicas modernas. Já habilitas manteve sua conotação técnica original, denotando especificamente aptidão prática.

Desse modo, jogabilidade compreende a qualidade ou capacidade de algo ser jogável e a própria natureza constitutiva da experiência lúdica.

Para melhor ilustrar isso, defino jogabilidade como:

“Estilo de um jogo determinado pela integração entre sistema, sua expressão estética e a mentalidade proposta”

 

ANATOMIA DA JOGABILIDADE

O que faz um jogo ser um jogo, afinal? Para melhor expressar isso, eu proponho aqui uma organização disso em três esferas: sistema, estética e mentalidade.

SISTEMA: composto por regras (proposições), mecânicas (processos) e arbitragens (dinâmicas).

ESTÉTICA: composto por elementos diegéticos/miméticos (dentro da ficção) e elementos extradiegéticos (que existem fora da ficção, como mapas, dados ou artes)

MENTALIDADE: é a lente cognitiva que orienta as dinâmicas de jogo.

Vamos mastigar mais:

1) No que tange sistema:

O que é uma regra?
São proposições fundamentais que definem os parâmetros básicos da experiência lúdica. Estabelecem, dentro de um jogo, o que pode ou não ser feito, bem como as consequências de cada decisão. Segundo Michael Filimowicz, as regras possuem três características essenciais: primeiro, são intencionalmente arbitrárias – criadas especificamente para cada jogo, mas não aleatórias, pois servem a um propósito operacional claro; segundo, podem ser explícitas (formalmente escritas) ou implícitas (baseadas em convenções não declaradas, mas compreensíveis); e terceiro, visam garantir justiça e equidade, assegurando que todos operem sob as mesmas possibilidades. 

O que é uma mecânica?
São processos operacionais que transformam regras em ações jogáveis. Elas especificam os métodos de interação entre pessoa-sistema, determinando como abordagens podem ser processadas e se manifestar no mundo do jogo.

Regra & mecânica

Em uma demonstração usando o xadrez como referência, podemos distinguir precisamente entre regra e mecânica no movimento do cavalo. A regra estabelece que o cavalo se move em "L", compreendendo duas casas em sentido vertical ou horizontal seguido por uma casa na perpendicular. A mecânica, por sua vez, representa a materialização disso em jogo, quando alguém executa esse movimento, observamos que ele necessariamente salta sobre quaisquer peças que estejam no caminho, alcançando exclusivamente a casa final do "L". 

Ao aplicar isso ao D&D antigo, à luz do d20age RPG, vamos usar como exemplo a necessidade de alimentação. Por regra: “personagens devem consumir uma dose de ração por dia para evitar exaustão” (nota: exaustão é uma regra genérica para condições, nesse caso, fome). Isso define o requisito em abstrato, que se manifesta no jogo por meio de uma mecânica: “cada pacote de ração contém sete doses e cada dia sem dose de ração resulta em um nível de exaustão”. Isso significa que se você desconta uma dose de sua ração em cada dia de viagem, você está aplicando uma mecânica, usada para colocar a regra de fome por nível de exaustão (sim/não) em prática. Essa relação entre regra e mecânica cria um processo dinâmico sobre como lidar com essa integração, e é exatamente aí que entram desafios e tomadas de decisão, que vão influenciar na mentalidade de jogo.

O que é uma arbitragem?
É uma decisão em tempo real para casos interpretativos no jogo, podendo ser apenas procedural, quando uso de um sistema denso (com regras e mecânicas taxativas) ou fluída, priorizando reinvindicações ficcionais, verossimilhança e agilidade.


2) No que tange estética:

O que são elementos diegéticos/miméticos?
Compreendem tudo o que existe na realidade ficcional - desde a ambientação até as regras internas que sustentam sua verossimilhança. Se o universo tem dragões ou leis físicas alternativas, esses elementos são 'verdadeiros' dentro do mundo imaginado, criando coerência interna suficiente para sua simulação.


O que são elementos extradiegéticos?

É tudo que não pertence ao universo interno do mundo fictício. Esses elementos são objetivados para se criar uma relação pessoa-jogo, basicamente sobre três aspectos:

1. Ferramentas didáticas: são materiais de apoio durante as partidas, como fichas de personagens, desenhos esboçados ou uso de miniaturas, que, embora não façam parte da ficção, podem ser usadas para melhor entendimento do jogo.

2. Elementos culturais: representam uma conexão afetiva ou identitária com o jogo, como copos, camisas, dados customizados ou broches, que servem como expressão simbólica de aprofundamento da relação lúdica.

3. Materiais metatextuais:  são contextualizações para além do sistema que servem como complementação da compreensão do jogo, como textos em blogues, manuais de estilo ou vídeos, que também servem como divulgação de um jogo.

3) No que tange a mentalidade:
Refere-se a uma abordagem cognitiva e comportamental orientada para a forma como se engaja com um jogo. Pode-se dizer que é um comportamento emergente que surge quando as regras e mecânicas interagem durante o jogo. Enquanto as regras definem "o que pode ser feito" e as mecânicas "como fazer", a dinâmica é resultado dessa interação. Retomando o exemplo prático no xadrez: Você opta por não defender um peão ameaçado, usando o cavalo para contra-atacar uma peça de maior valor (torre), é uma decisão que surgiu do processo dinâmico da interação entre regras & mecânicas.

Voltando ao exemplo da ração no d20age RPG: Por regra, você precisa de uma dose ração por dia para evitar exaustão por fome. A mecânica que expressa essa regra envolve a gestão logística de doses de ração, sendo cada pacote equivalente a 7 doses, bem como a consequência da não alimentação, por aplicação de um nível de exaustão por dia. A ração é um recurso finito, que impacta em outras regras e mecânicas de jogo, como a regra de carga, que define que personagens navegam em carga leve com até 400 cn, carga média com 401-800 cn e carga pesada com 801-1600 cn. Isso resulta em mecânicas derivadas, como penalidades correspondentes em movimento (e outras interações com a ficção) de acordo com sua carga. Como resultado dessas integrações surgem diversas decisões informadas de jogo, como decidir investir um dia de viagem em caça para conseguir alimento equivalente a doses de ração para evitar a fome ou jogar a mochila fora durante uma fuga para ficar de carga leve, movendo-se mais rapidamente, assumindo as consequências de ter de lidar com a falta de recursos (como a ração) no futuro.


COMO É ENTÃO, A JOGABILIDADE d20age RPG?

SISTEMA: d20age RPG (retrocompatível ao 0e).

O livro consiste em uma releitura do D&D original (de 1974), como o mesmo esqueleto de regras estruturais e mecânicas de jogo. A principal delas: a regra de progressão de nível por ganho de experiência (XP) correlacionado a tesouros, o que deriva em sua mecânica central, que transforma essa regra em algo tangível por englobar a ordem de 1 XP para cada 1 po, especificado para tesouros recuperados de volta à civilização dentro de um ecossistema de aventuras. Também há opções de classes de personagens, Classe de Armadura, Tac0, pontos de vida, salvaguarda, gestão de recursos, gestão de tempo, e tudo que se correlaciona ao sistema do D&D original, apresentado com uma visão fermentada em experimentação e reflexão sobre a jogabilidade.

Esse sistema possui regras & mecânicas intencionalmente lacunares, o que resulta em grande espaço para um processo dinâmico chamado de "arbitragem dialética". Essa forma garante com que qualquer coisa possa ser resolvida de forma transparente e consistente, sem a necessidade de uma inflação de regras & mecânicas pré-definidas. 

ESTÉTICA:

- diegética/mimética: o cenário de fundo proposto envolve uma fantasia tipicamente medieval, que pode ser customizada para fantasia clássica, fantasia sombria, espada & feitiçaria ou qualquer derivação alinhada.

- extradiegética: recomenda-se fortemente a descrição em primeira pessoa por meio dos sentidos: audição, olfato, paladar, tato e visão, apoiadas por fichas simples e recursos mínimos. Essa economia de elementos evita a inflação de informação e liberta o potencial imaginativo. Este é um RPG artesanal: o livro e materiais correlatos funcionam como oficinas de jogo, não produtos fechados. Propõe-se criação customizada de aventuras e módulos, numa experiência tipicamente proto-D&D, sem roteiros pré-fabricados. Rejeita-se o RPG mercantilizado, que aliena o ato criativo ao transformá-lo em commodity. O resgate está justamente no estímulo à criação autoral e desafios viscerais, com mapas e artes em preto e branco, que servem como ferramentas acessíveis, incentivando a reprodução caseira e uma textura deliberadamente crua, porque o fazer manual é parte da experiência.

MENTALIDADE: RPG estratégico

Essa abordagem parte do princípio de que as tomadas de decisões devem ser fruto de uma análise de custo-benefício alinhada ao objetivo principal. Na fantasia tipicamente medieval, se você não faz parte da aristocracia, do clero ou de uma eventual burguesia emergente, você faz parte de uma plebe fadada a trabalhar e viver de maneira precária sem muitos direitos. Personagens buscam sair dessa posição no improvável sonho de ouro & glória, por isso aceitam desbravar ermos insólitos e dédalos sombrios a fim de obterem  tesouros antigos e esquecidos. A maioria vai morrer no processo, pois se trata de uma tarefa potencialmente letal, por isso é preciso pensar estrategicamente. A própria logística entra como parte importante do desafio, pois a carga impacta em ritmo de navegação e exploração, e aí que entram decisões como uso de carroças, cavalos, mulas ou contrato de auxiliares. O jogo é construído por uma dinâmica de consequências das decisões anteriores, um caminho mais curtos ou mais seguros, fazer ou não o mapeamento para melhor localização, enfrentamento de um combate, negociação ou fuga, e diversos desdobramentos que vão tecendo novos eventos. Em resumo o jogo ocorre por um desencadeamento emergente das decisões de participantes, o que significa que para jogar bem esse RPG é preciso pensar estrategicamente. Não tem nada a ver com idealizar uma história que pareça hipoteticamente interessante, como pensar: “o que meu personagem faria?” ou "o que é legal para a história?", a forma de pensar tem muito mais relação com: “o que você quer fazer?”. O jogo exige adaptação contínua, capacidade de decisões improvisadas e investigação ficcional recorrente para melhor se informar e decidir como agir da forma mais consistente possível. Em muitos casos é melhor jogar para sobreviver, em outros um risco pode (ou deve) ser assumido. Histórias legais ou interesses até podem emergir desse jogo, e geralmente surgem, mas são consequências genuínas do processo, não seu objetivo.

 
CONSIDERAÇÕES QUIRAIS

Nessas jornadas senti a necessidade de escrever esse artigo para me ajudar a melhor organizar minhas ideias sobre o tema. Certamente há algumas pontas soltas, e partes que preciso aprofundar melhor, mas acredito que é possível ter uma melhor visão sobre jogabilidade e o tipo de RPG que buscamos.  

 XP indicado

Ao longo do texto eu deixei linques diretos para o conteúdo abordado, além de sempre indicar importantes livros sobre a historiografia do D&D, que são minhas maiores fontes de estudo, registrados em nossas referências.

Em adicional, recomendo alguns conteúdos específicos, mas preste bem atenção: essas referências não são necessariamente alinhadas à este artigo, mas me ajudaram a refletir e chegar nas conclusões que cheguei para escrevê-lo, por isso considero que podem ser um caminho interessante.


Muster, A Primer for War, Eero Tuovinen  

Rules & Mechanics, Michael Filimowicz

GNS and Other Matters of Role-Playing Theroy, Ron Edwards

System does Matter, Ron Edwards

2 comentários:

  1. XP importante para compreender muito do que se é dito sobre OSR (e para entender RPG em geral). O exemplo da ração é perfeito; não apenas por ser prático no nosso estilo de jogo, mas por ser negligenciado em outras abordagens de RPG de fantasia medieval.

    Gostei dos artigos do Ron Edwards no XP Indicado. Conheci o The Forget antes de conhecer a OSR e esse dois foram muito importantes para que eu pensasse RPG e finalmente entendesse o que eu quero jogar e porque. System Does Manter devia ser obrigatório nas escolas hahahaha

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Salve Job Vortex! Muito obrigado pelo retorno.

      Pois é, eu estou amadurecendo as formas de entender e explicar esse estilo de RPG, e compartilho pra irmos coletivamente olhando pra coisa em construção :)

      Esses artigos são muito importantes, embora eu não concorde exatamente com todo o conteúdo, acho uma XP suporte útil para aprofundamento de nosso entendimento do jogo! Abraço,

      Eliminar

Eixos de Alinhamento no D&D - Parte III/III

Por Quiral Alquimista Na parte 01 dessa série vimos como Gary Gygax partiu de uma ideia embrionária no D&D0e para uma mais madura, publi...