quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Eixos de Alinhamento no D&D - Parte III/III

Por Quiral Alquimista


Na parte 01 dessa série vimos como Gary Gygax partiu de uma ideia embrionária no D&D0e para uma mais madura, publicada no artigo Strategic Review de 1976. Ali ele buscou basicamente alcançar dois objetivos: 1) deixar claro que Ordem x Caos não são sinônimos de bondade e ou maldade. Para isso ele criou um segundo eixo (Y), de Bem x Mal, culminando em cinco opções de alinhamento. 2) Melhor trabalhar a forma de usar alinhamento no jogo, reforçando a proposta de que é o comportamento de personagens que guiará o alinhamento. Há algumas contradições pontuais para que isso funcione bem, principalmente com a possiblidade do uso de classes alinhamento-dependentes, como druida ou paladino. Na parte 02 de nossa série mergulhamos na evolução disso, que ocorreu dois anos depois (em 1978) no PHB do AD&D, com um modelo mais robusto, fragmentando o eixo da neutralidade em cinco partes, proporcionando assim os 9 famosos alinhamentos. No ano seguinte GG trabalhou esse modelo com maior densidade (DMG), e busquei no artigo fazer uma varredura geral que nos permitiu olhar para a materialidade do RPG proposto, e como isso interferente significativamente na jogabilidade, culminando em uma fortíssima contradição: é o alinhamento, na prática, que guina o comportamento, não o contrário. Agora proponho apresentar uma solução! As edições seguintes não confrontaram isso de forma direta, interagindo mais ou menos com uma estrutura similar para à do AD&D1e. O que faremos é voltar à proposta inicial e destrinchá-la, mantendo a mentalidade do RPG estratégico e artesanal.

 
ETIMOLOGIA

Uma coisa que sempre gosto de fazer, de início, é conhecer sua origem etimológica:

Alinhamento deriva do latim allineare, que significa "colocar em linha". O termo é formado pela junção do prefixo "ad-" (que indica direção ou aproximação) com o substantivo "linea" (linha). Portanto, etimologicamente, “alinhamento" refere-se ao ato de colocar algo em linha (ou em uma fileira reta).  No D&D original, esse termo foi escolhido para representar algo como um “posicionamento ideológico” frente aos eixos da ordem, neutralidade ou caos.

 

INSPIRAÇÃO

Alinhamento é uma extração direta da literatura de Michael Moorcock, embora tenha também uma boa influência de Poul Anderson, ambos registrados nas referências do D&D antigo. No universo Moorcockiano, principal inspiração, ocorre um conflito cósmico entre Ordem x Caos, forças impessoais que representam extremos opostos da existência. A Ordem simboliza controle absoluto, rigidez e estagnação, enquanto Caos representa mudança constante, entropia e livre criatividade. Nenhum dos dois lados tem intrínseca relação com bondade ou maldade, pois são extremos destrutivos quando dominam completamente. Ocorre uma disputa que exige uma espécie de “balança cósmica”, necessária para um equilíbrio importante para existência da vida. Elric de Melniboné interagem com isso ao longo de sua jornada, como o pacto com Arioch, um “Senhor do Caos”, invocado para obtenção de poder e vingança contra seu primo Yyrkoon, bem como com sua relação com a Stormbringer (por minha conta, acho que o nome em português deveria ser “Tormentária”), uma espada rúnica demoníaca, que se alimenta de almas e concede poderes sobrenaturais a Elric.

Já nos livros de Poul Anderson, os conceitos de alinhamento são abordados por meio da oposição de forças (Ordem x Caos). Em Três Corações e Três Leões (Three Hearts and Three Lions), Holger Danske, um engenheiro dinamarquês, é transportado para um mundo medieval fantástico onde a Ordem está associada ao cristianismo e à civilização, enquanto as forças do Caos se manifestam através de trols, criaturas feéricas e seres das florestas. No livro A Espada Quebrada (The Broken Sword), o embate entre Ordem e Caos surge como uma disputa entre a lealdade e a hierarquias humanas contra a liberdade amoral dos elfos e outras entidades caóticas, ligadas às forças imprevisíveis da natureza.

 

PRESENÇA (INDIRETA) EM JOGOS ESTRATÉGICOS

No período pré-74, muitos jogos estratégicos (wargames) já exploravam mecânicas de moral, que representam disciplina e lealdade das tropas em combate, determinando se resistem ou recuam frente a ameaças. Embora não tenhamos uma mecânica formal de alinhamento, alguns conceitos relacionados já estavam presentes. No Chainmail, por exemplo, o mais importante dos jogos de estratégia da bagagem D&Dzista, as unidades nobres e bem treinadas exibiam maior moral e disciplina, enquanto tropas menos organizadas (como orques) ou criaturas fantásticas tendem a ter menor valor de moral, o que refle de certa forma uma distinção tácita entre forças “ordeiras” e “caóticas”. Essa distinção, embora não explicitada como uma mecânica de alinhamento, também serviu como base para sua inserção em Dungeons & Dragons.

 

COMO EXPLORAR A IDEIA ORIGINAL: COMPORTAMENTO GUIA ALINHAMENTO?

Em nossa releitura do D&D original, o d20age RPG, eu refleti sobre essa sobreposição do cenário ao sistema, impactando no comportamento guiado de personagens pelo alinhamento. No AD&D isso transbordou exageradamente, em minha opinião. A influência dos deuses de Greyhawk no cotidiano entranhou em diversas passagens do sistema, justificando penalidades de ganho em XP, redução de níveis de classe, impacto na confecção de itens mágicos e até imprimindo missões para penitência.

Busquei amortecer esse impacto no nosso livro base. Repare a passagem da página 12, no guia para geração de personagens, passo 5.



Isso significa que, de imediato, ninguém deve se preocupar com alinhamento na geração de personagens. Isso está diretamente correlacionado ao fato da classe clérigo ter sido a mais alterada, em nossa versão magista (para mais informações, veja este vídeo aqui). 
  
No capítulo de alinhamento, deixei a passagem:

Ordem e caos são forças cósmicas engajadas em uma luta eterna. Neste campo de batalha demônios, deuses e horrores antigos indescritíveis e distantes duelam em um ambiente quase atemporal. Agentes da ordem e do caos lutam em todo tipo de plano de existência e nas nuances do incompreensível. Há também forças da neutralidade, que buscam um equilíbrio no meio disso tudo. Nessas questões em que o ser ou não ser é filosófico e até poético, aqueles que se aprofundam nestes assuntos podem arriscar a própria sanidade, e aventurar-se pode significar se deparar com esse equilíbrio em constante vertigem.

Minha intenção foi apresentar alinhamento no estilo Moorcockiano, mas que possa facilmente ser ignorado ou ajustado para outros tipos de cenários. Essa passagem foi nesse sentido: Personagens podem se envolver de forma sutil, direta ou indiretamente nessa balança infinitesimalmente sensível; nas entrelinhas, a indicação é: se isso não for interessante na sua mesa, ignore!

Idioma de alinhamento: Na página 50, há um quadro com dicas gerais sobre idiomas. Há uma opção de idioma do tipo “alinhamento”, com o texto: essa alternativa se trata de uma simplificação com três possiblidades de idiomas correspondentes às forças do caos, ordem ou neutralidade. Isso pode ser explorado de maneira mais refinada, como idiomas culturais ou religiosos. Não sei se ficou claro a intenção aqui, mas eu acho muito esquisito essa proposta do D&D antigo de que criaturas de mesmo alinhamento conheçam um idioma em comum para se comunicar, automaticamente. Personagens começam com o idioma do alinhamento, inclusive (o que ajuda a banalizar o impacto de idiomas). Em nossa proposta isso não funciona assim! Você pode ter os três idiomas: caos, ordem e neutralidade, e funcionam como qualquer outro idioma, como élfico ou anão. A orientação é, inclusive, que se customize isso para seu mundo de jogo. Se for a terra média, por exemplo, não terá a língua do alinhamento, mas coisas como a língua de Mordor ou Qenya (o “latim” élfico).  

Comportamento de criaturas: nos bestiários há um indicativo de alinhamento, em alguns casos, talvez, eu devesse ter sido mais ousado nas intervenções. Vamos pegar os dragões como exemplo (pg 125) - Comportamento: tem relação com alinhamento. Dragões caóticos geralmente apreciam a carne humana (e humanoide), e tenderão a atacar ou subjugar humanoides. Quando alinhados à neutralidade, atacam ou ignoram de acordo as circunstâncias, e dragões alinhados à ordem podem até se aliar à humanoides dignos da honra.

Confesso que essa passagem, inspirada nos textos do D&D antigo, conflitam com a ideia de que caos é diferente de mal, e ordem é diferente de bem. Mas me permita dar uma passada de pano para o meu próprio livro! Embora isso possa ser melhor trabalhado, é razoável também entender que como as planilhas das criaturas são enxutas, é preciso alguns parâmetros que servem como uma ferramenta ágil. Desse modo, alinhamento pode ser usado como indicativo para avaliar se uma criatura se alinha a estruturas de hierarquias e civilizações complexas ou tende ao individualismo e a lei da força.

Artefatos e entidades: esse espaço é ótimo para aprofundar mais em alinhamentos, caso isso tenha um bom entrelaçamento com seu cenário. Inspirado nas relações de Élric com sua “Tormentária” ou Arioch, personagens podem encontrar entidades e itens sencientes que possuem alinhamento, oferecendo poderes e gerando corrupções e qualquer derivação de relações que funcionem em seu mundo de jogo.

Magias e alinhamento: algumas magias estão descritas na estrutura “alinhamento dependente”, como a Proteção contra o mal: uma energia lhe confere bônus de +1 na CA e em todas as salvaguardas contra inimigos de alinhamento diferente. Em adicional, criaturas encantadas, invocadas ou constructos não conseguem fazer ataques corpo a corpo, desde que não sejam atacadas por quem conjurou.

Repare que não há correlação de caos com mal, aqui. A proteção contra o mal pode ser contra a ordem, se o seu alinhamento for “caos”. Caso em sua mesa você aborde isso de forma customizada, é bem fácil o ajuste. Pegando de novo a terra média como exemplo, pode ser “proteção contra Mordor”.

Recentemente me deparei com uma abordagem muito elegante e completamente alinhada ao d20age RPG. Nos arquivos de Idraluna, Thomas registrou sua versão caseira para organizar magias por cores: Listas de Magias de D&D0e com Código de Cores. Em resumo, o alinhamento envolve:

- Magia Branca (ordem): magias de proteção, cura e similares.

- Magia Negra (caos): magias de necromancia, invocações e dominações.

- Magia Vermelha (neutro): magias de evocação, elementalistas.

- Magia Verde (neutro): magias da natureza, vida.

- Magia Azul (neutro): magias de ilusão, psionismo e adivinhação.

A relação com alinhamento proposta envolve que há um poder inicial alinhamento dependente, e que embora possam ocorrer compartilhamento de trocas de magias, a partir de terceiro círculo você só consiga usar magias da sua cor.

Cito essa proposta como um exemplo para tirar inspirações. O meu ponto aqui é mostrar que alinhamento no d20age RPG pode ser explorado de diversas maneiras, com maior ou menor impacto na sua mesa, sem grandes amarras já na base do sistema.


CONSIDERAÇÕES QUIRAIS

 Encerro aqui essa terceira e última parte sobre alinhamento no D&D antigo. Isso não significa, obviamente, que o assunto está encerrado, mas acredito que tenha ficado claro a minha visão atual da coisa. Embora eu tenha cogitado a remover completamente alinhamento do chassi base de nosso sistema, optei por deixar como essa ferramenta auxiliar, que não atrapalha se for ignorada, mas que pode ser usada para um improviso qualificado, bem como ganhar maior protagonismo sob demanda. Caso queira continuar esse assunto , estou à disposição! 

 

Referência

Ao longo do texto eu deixei linques diretos para o conteúdo abordado, além de sempre indicar importantes livros sobre a historiografia do D&D, que são minhas maiores fontes de estudo, registrados em nossas referências.

Em adicional, recomendo aqui alguns conteúdos específicos:

- Ler os livros originais do D&D0e.

- Ler as sagas de Élric de Melniboné


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