domingo, 14 de setembro de 2025

CRIE SEU MUNDO DE JOGO JOGANDO

Por Quiral Alquimista 


Em um RPG estratégico o foco do jogo reside em atingir um objetivo tangenciável. Pensando por esse aspecto e em toda complexidade de um mundo fantástico, pode nos parecer assustador a ideia de jogarmos como Desafiante da Mesa (DM) sem antes dominarmos todo o universo ficcional. Isso significa que antes de começar a jogar seria então preciso pegar algum material existente (como o mundo de
Greyhawk, Forgothen Realms ou Dragonlance) ou criarmos o nosso próprio. Provavelmente isso lhe parece um exercício extremamente exaustivo, além de significar que você vai demorar muito tempo para começar a mesa. Se a gente considerar que o D&D antigo foi projetado para ser jogado como campanha, ou seja, por diversas sessões, por meses (e até anos), com resultados persistentes, faz sentido combinar essa proposta com um cenário completo. Provavelmente eu só piorei até aqui o eventual pânico inicial que algumas pessoas podem sentir ao se imaginarem exercendo essa função no jogo. De fato, isso seria uma tarefa Hercúlea!

O meu objetivo com este artigo é apresentar uma solução: “seus problemas acabaram!” E veja bem, essa não é uma produção das organizações Tabajara, confrontaremos de fato esse tipo de problema para superá-lo com um método que desenvolvi a partir do modelo de Tim Waddell, originalmente publicado na fazine Wargamers Information #7.  

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7 PASSOS PARA CRIAR SEU MUNDO DE JOGO JOGANDO

Para acompanhar esse passo a passo, recomendo ter em mãos o livro d20age RPG - LIVRO BASE (obviamente que sua versão digital, gratuita, é igualmente funcional).

Essa pauta envolve uma filosofia do tipo "menos é mais", que em resumo significa que você enxuga sua preparação e a direciona para algo objetivo. Bora lá!


PASSO 1 - UMA AVENTURA

Comece pelo começo! De imediato o que é necessário é uma preparação rápida para já começar a jogar. Como um dos fundamentos desse tipo de RPG envolve uma definição objetiva sobre o propósito do jogo (XP), basta então preparar* uma aventura simples e objetiva com isso em mente. Se nos basearmos no D&D original de 1974, isso envolve buscar “tesouros antigos e esquecidos”, mas obviamente que é possível derivar isso em diversas alternativas, como resgatar prisioneiros ou escapar de uma prisão. Mas é importante que se tenha esse objetivo de forma clara e tangível. Desse modo, você pode preparar* uma aventura que dialogue bem com esse fundamento. Deixe me fazer uma nota sobre o que eu chamo de preparar:


* Preparar significa criar o seu material de jogo ou trabalhar sobre um material existente. Em ambos os casos, será necessário algum nível de preparação. Usar um material “pronto” (cuidado com as aspas) significa que você terá parte do exercício adiantado, geralmente você tem uma introdução geral sobre o problema e o objetivo da aventura, existe pelo menos um mapa, uma tabela de encontros aleatórios e tudo mais. Isso significa que usar um material “pronto” resultará em um bom adiantamento, mas cuidado com armadilhas. Será importante fazer uma leitura geral, compreender o seu conteúdo e fazer uma aferição se há alinhamento com a estrutura vintage de RPG. Alguns materiais exigirão mais ajustes, outros menos. A seguir apresento um modelo de análise que lhe permita avaliar a qualidade do material:

AFERIÇÃO
a) O resumo introdutório, a proposta e os elementos de gancho e rumores são interessantes?  
b) O mapa é bem organizado, inteligível e propõe um bom desafio de navegação? (Há diferentes rotas, eventuais passagens secretas?)
c) Há desafios (armadilhas, enigmas, criaturas) bem colocados, consistentes e verossímeis? Há uma tabela de encontros aleatórios bem bolada? 
d) O objetivo (tesouros) estão bem distribuídos? São verossímeis? 
e) há adjacências instigantes? como algum NPC misterioso ou um lugar estranho?
 f) Há ganchos para continuidades? um mapa de tesouros ou um segredo de algum NPC importante?  
NOTA: obviamente que nem todos esses elementos precisam ser sempre presentes. Não será toda aventura que conterá um "NPC misterioso" ou caminhos desafiadores (muitos covis não terão esta estrutura), mas esses são parâmetros excelentes que eu desenvolvi de forma customizada para permitir uma rápida análise da qualidade de um material, alinhada ao nosso estilo de RPG, inspirada no artigo publicado na golbinpunch (fiz um vídeo resenhando isso aqui).


Como referência (ou para uso direto), deixo aqui uma pequena lista, com três opções gratuitas, que eu considero muito boas para uma dose única ou de poucas sessões:

1. A Torre Prismática de Farbheritz(Quiral Alquimista): é meio estranho fazer uma autorreferência, eu sei que isso é problemático, mas eu preparei essa aventura exatamente com esse objetivo. O texto está recheado de dicas, mas busquei não o deixar inflado de informações. Tem mapas cuidadosamente explicados, fichas prontas, bestiários, tesouros, de forma que não é preciso uma busca complementar em outros materiais. Não há nenhum roteiro, de forma que cada vez que ela for jogada, resultará em uma experiência única, pois há diversas formas de explorar o casarão e a torre, com uma sequência de eventos emergentes de cada interação. 

2. Tumba dos Reis Serpentes (Skerpless): essa aventura foi projetada para funcionar como uma introdução à experiência de incursões por dédalos. O autor defende que ela seria como "a primeira fase do jogo Super Mario Bros" para esse tipo de RPG. A partir dessa experiência você estaria pronto para jogar (como participante ou DM) materiais mais complexos e longevo (tem resenha minha, aqui)

3. The Waking of Willowby Hall (BenMilton): uma aventura excelente que mistura elementos cômicos com tensão e suspense. Há um clássico de um gigante e sua gansa de ovos de ouro combinados com uma mansão mal-assombrada que desperta conforme personagens a incomodam na exploração. Pode ser jogada em uma dose única ou em poucas sessões (tem resenha minha, aqui).

Mas é extremamente prazeroso criar seus próprios materiais. Se você não está confortável, comece com alguns prontos para ganhar XP, em seguida, se arrisque! Eu busquei deixar uma singela contribuição sobre isso em tutorial na oficina de DM do nosso livro: d20age RPG – Livro Base, mas há outras opções. Uma delas é um vídeo-tutorial que fiz no canal: como criar uma aventura.

Mas veja bem, para essa proposta funcionar é importante que você não se preocupe com o mundo externo. "O seu mundo conhecido é a aventura", portanto use fichas prontas ou gere personagens previamente com cada pessoa no tempo que você tiver e puder. Se achar válido, faça antes uma sessão zero (d20age RPG – Livro base, pg 91), para deixar claro que o mundo lá fora da aventura está abstraído nesse jogo. Quando participantes resolverem deixar o ambiente da aventura (ou morrerem no processo) encerra-se essa sessão. O que será jogado nessa proposta é apenas uma incursão. Por isso comece diretamente com personagens na entrada, e vamos ver do que a mesa é capaz!


PASSO 2 - MAIS AVENTURAS

Repita o “passo 1” algumas vezes. Agora você já mestra uma campanha de RPG, e ela é chamada de "campanha episódica". Nesse modelo, a continuidade depende de uma organização em que a navegação para ida e volta dos ambientes típicos de aventuras as interações na cidade são feitas de forma automatizada, não sendo (ainda), elementos de jogo. Personagens gastam seus recursos e tempo na vila para se recuperarem, na compra de equipamentos, contrato de auxiliares ou qualquer coisa desse tipo, bem como custeiam suas diárias. Mas isso tudo é feito no modo automatizado ou simplificado, apenas por diálogos simples com NPCs de improviso (pode ser feito de forma assíncrona, por textos, em um grupo por redes sociais ou como preferir. Deixe claro que a campanha tem com foco as aventuras, com resultados persistentes.


PASSO 3 - DEFINA SEU PANO DE FUNDO 

Ao longo da experiência de aventuras use seu tempo livre para desenhar um cenário de fundo. Trata-se de um esboço geral, que oriento englobar 5 tópicos importantes: a) o passado; b) a sociedade; c) a magia; d) aventuras; e) personagens. 

No d20age RPG, esse cenário de fundo é uma típica fantasia medieval, o que significa que há uma íntima associação de uma ficção medieva (da idade média) com elementos sobrenaturais, como magia, criaturas fantásticas e entidades.

Faça esse tipo de exercício, em frases curtas e objetivas que vão criar um contorno geral do seu mundo conhecido:

a) O passado: um parágrafo sobre os mistérios do passado. Como são os mitos gerais, suas distorções e antigas civilizações que caíram? Isso significa que as verdades devem ser investigadas, e serão fruto emergente do jogar.
Exemplo (d20age RPG): é um mistério de atmosfera sombria, largamente distorcida, recheada de mitos e rumores sobre criaturas sinistras e civilizações antigas que ruíram, de forma que o mundo atual é, de certa forma, uma degradação do que outrora foi. As verdades serão, portanto, investigadas e descobertas como parte do jogo.

b) A sociedade: um parágrafo sobre as classes sociais e a disputa pelo poder na atualidade. Em adicional, defina resumidamente sobre povos fantásticos, e qual sua relação e relevância no mundo conhecido.
Exemplo (d20age RPG): é organizada em reinos, feudos ou cidades-estados, construídas sobre os escombros de um antigo grande império que governou este mundo por milênios e ruiu há alguns séculos. Atualmente as classes sociais de poder são: membros da aristocracia, clero e uma pequena emergente burguesia. Há uma quarta classe, que consiste na grande maioria da população, que é a plebe. Analfabeta, empobrecida e mantida sob rígido controle pelas estruturas dominantes. Há antigas civilizações élficas, anãs e gnômicas que, embora outrora majestosas, hoje sobrevivem em silenciosa remissão, como fragmentos dispersos, ocultos entre florestas profundas, montanhas esquecidas e vales isolados. Derrotadas por guerras, invasões ou pela lenta erosão do tempo, evitam o contato com os humanos, embora, ocasionalmente, ocorra algum escambo ou breve interação mercantil.

c) A magia: um parágrafo que organize o impacto da magia e itens mágicos.
Exemplo (d20age RPG): é presente e real, embora seja misteriosa e até perigosa. Dizem que entidades antigas e poderosas manipulavam a realidade como se molda um barro para se tornar um vaso. Mas esse poder está fragmentado, enfraquecido e quase esquecido. Há poucos resíduos perceptíveis, de forma desorganizada e temida pela maioria. Algumas frações desse conhecimento podem ser encontradas em grimórios, pergaminhos ou itens mágicos.   

d) Aventuras: um parágrafo que defina o principal tipo de aventuras.
Exemplo (d20age RPG): há um submundo místico e ermos insólitos, recheados de tesouros antigos e esquecidos, acompanhados de diversas criaturas mortais, armadilhas letais e enigmas traiçoeiros. Por essas entranhas da terra, mares revoltos ou terras desoladas há diversas ruínas dos antigos povos que outrora aqui dominaram. As aventuras tendem, então, a ocorrer às margens das regiões seguras, geralmente pelas bordas do que é chamado de “mundo conhecido”.

e) Personagens: um parágrafo que incorpore personagens ao mundo.
Exemplo (d20age RPG): são incursionistas com treinamento básico para aventuras que não possuem nada mais a perder além de sua própria vida, por isso arriscam-na pelo (improvável) sonho de “ouro & glória” aventurando-se por ermos insólitos e submundos místicos em busca de tesouros antigos e esquecidos.


NOTA: esse é um pano de fundo geral em escrevi o livro base , inspirado na estrutura fundacional do D&D antigo e suas referências. Você pode usar esse modelo diretamente, sem problema algum (sinta-se a vontade). Mas talvez você deseje fazer alterações ou incrementos pessoais. 

Com um pano de fundo desse tipo, você será capaz de mais facilmente avançar para os próximos passos, que envolve criar o marco seguro e uma região. 

PASSO 4 - PREPARE UM MARCO SEGURO

Ao longo da experiência, com um pano de fundo e diversas ideias que surgem das aventuras, você pode tem total capacidade para iniciar suas janelas para ampliar seu material de jogo. Geralmente a demanda começa por um tratamento maior no marco seguro. Em resumo é um local de segurança, um assentamento, que pode ser dos mais variados tipos, como uma vila ou um forte. As interações aqui geralmente ocorrem entre as incursões, e são usualmente chamadas de interlúdio. Enquanto no começo de sua experiência (passos 1 e 2) isso era abstraído, agora se transformará, também, em jogo. As interações aqui podem resultar no fornecimento de novos ganchos e rumores, podem existir grupos de incursionistas (NPCs) concorrentes, um vilão disfarçado na vila com interesses pessoais, cobrança de impostos sobre tesouros coletados e qualquer interação que você achar pertinente, incluindo aventuras dentro da própria vila. Há um tutorial mais detalhado sobre isso no d20age RPG – Livro Base, pg 68.


PASSO 5 - PREPARE A REGIÃO

Até o momento, seguindo esse passo a passo, o percurso fora do marco seguro estava abstraído, agora é hora de transformá-lo em jogo! Em artigo anterior aqui neste blogue (O que “foi” a OSR) eu apresentei um resumo objetivo da estrutura de jogo proto-D&D de 1974:

  • um marco seguro: uma vila ou uma cidade
  • alguns locais típicos de aventuras (um megadédalo ou vários dédalos por aí)
  • uma região onde tudo isso é alocado


Uma vez que você já tem aventuras e um marco seguro azeitadas para jogar, falta agora organizar sua região. Uma torre em ruínas pode estar há algumas horas da vila, bem como aquele tal castelo mal assombrando ficará há dias dali. O terreno a ser percorrido, as variações atmosféricas, criaturas que ali habitam e a gestão de recursos como comida e água ganham grande relevância a partir de agora. Para preparar melhor sua região, use o tutorial: “aventuras por ermos”, no livro d20age RPG – Livro Base, pg. 72.

Você estará, assim, construindo o seu “mundo conhecido” da campanha. Em resumo, esse conceito define um lugar pequeno e isolado, geralmente contendo um ou alguns marcos seguros (como vilas) cercadas por ermos desconhecidos. Há alguns pontos de interesse para incursões, dédalos sombrios e temíveis, como antigas ruínas, uma mina abandonada ou um castelo assombrado, com potenciais tesouros que servem como atrativo para incursionistas com ousadia (ou tolice) suficiente para embarcarem nessas aventuras.

Uma vez que você tenha a tríade: marco seguro, aventuras e uma região, você tem em mãos o que eu chamo de módulo de jogo, que é, em resumo, um conteúdo planejado para acomodar campanhas persistentes, com liberdade para explorar a ficção e interagir com os diversos elementos, sem enredos, mas sim aventuras emergentes.

Neste processo, incorpore pela região mais aventuras, que agora terão nos diferentes percursos para acessá-la uma forma nova de desafio, que é a hex-navegação. 

Módulos de jogo prontos: há alguns materiais que já são projetados nesse sentido, e deixarei aqui também uma lista que pode ser usada como aprendizado, referência ou até mesmo diretamente em suas campanhas:

1. The Black Wyrm of Brandonsford (Chance Dudinack) – Um mini-módulo enxuto e objetivo, que permite uma campanha curta, talvez de um par de meses. Geralmente é muito difícil de se conseguir a proeza de apresentar um material pequeno e de grande qualidade para uma campanha vintage, mas Chance conseguiu. É rápido para você ler e entender, está praticamente pronto para usar e permite uma dinâmica super legal na mesa. Em resumo a vila de “Vaubrandão” está ameaçada pela presença de um terrível dragão, o que resultou na ausência humana na floresta circundante, que passou a ser dominada por criaturas feéricas (duendes e uma bruxa), além de um gigante e outras criaturas. A ideia em geral é tentar resolver o problema do dragão, em uma proposta bem aberta de resultados emergentes. Considero este um excelente material para uma primeira experiência com módulos de jogo. (Tem resenha no canal, aqui).

2. The Keep on the Borderlands (Gary Gygax) – Também conhecida como “B2”, se trata de uma pequena região nas fronteiras do mundo conhecido, contendo um forte como marco seguro, “o último bastião”, cercado por desafios geográficos como montanhas, um charco e uma mata fechada. Há diversas propostas de aventuras, como o sumiço de caçadores no bosque próximo (aranhas gigantes), criaturas do pântano que assombram o charco e, principalmente, um complexo de cavernas conhecido como “cavernas do caos”, que fica em um grande desfiladeiro repleto de entradas e habitado por clãs de humanoides hostis. Há um espaço, inclusive, para você criar uma aventura e inserir ali (que eu acho uma ideia sensacional como um guia para módulos). Este é um marcante material, pois foi nele que comecei as primiras experiências como RPGista, sendo tanto como um módulo que você pode usar para construir por cima, como um livro-tutorial para você aprender como fazer. (Tem resenha no canal, aqui).

3. Barrowmaze (Greg Gillespie) – Este é, de longe, o mais denso dessa lista. Não recomendo que você por ele se está começando, mas acredito que se você se interessa pelo tema de megadédalos, esse é um excelente material. Optei por deixá-la aqui por ter sido um dos importantes materiais que usei para botar em prova e refinar o d20age RPG. Barrowmaze contém uma pequena vila, uma região (um pedaço do mapa original de Outdoor Survival) e o temido e gigantesco labirintério. O conteúdo é principalmente focado para incursões por esse gigantesco cemitério labiríntico, que permite uma longeva campanha, que pode facilmente durar anos. (Tem resenha no canal, aqui).


OBSERVAÇÃO GERAL:
os passos 4 e 5 são intercambiáveis, o que significa que você pode alterá-los ou realizá-los de maneira simultânea, com preferir.

PASSO 6 - PREPARE OUTRA REGIÃO

É perfeitamente viável (e em muitos casos desejado) que sua campanha se resuma ao seu “mundo conhecido” originalmente idealizado como um módulo (até o passo 5).

O que tem no além mar ou para lá daquelas das montanhas "são coisas longe de mais para nos interessarmos".

Isso pode ser verdade e funcionar muito bem. Uma vez saturado (mas nunca acabado) o interesse e objetivos do módulo de jogo, é possível refazer os cinco passos anteriores até montar um novo módulo. Recomendo que dessa vez experimente um caminho "inverso". Comece agora organizando a região, detalhado algo importante sobre o pano de fundo, aloque um (ou alguns) marcos seguros e espalhe pontos de aventura. Isso vai permitir uma campanha ainda mais emergente, sem a estrutura original de salto de aventuras em aventuras pré-oferecidas, que foram importantes para seu começo, mas que agora podem ser melhor organizadas para uma jogo aberto. Busque mudar também a temática: se da primeira vez você preparou uma área montanhosa de clima temperado, faça-o em um deserto hostil e recheado de vermes da areia! Quem sabe em um arquipélago, com uma HEX-navegação por mares revoltos? (na pegada do Ciclo Terramarr, de Ursula Le Guin), ou ainda em um vale sombrio e nebuloso, governado por um conde vampiro carismático e orgulhoso?   


PASSO 7 - CONECTE TUDO E EXPANDA! 

Os passos anteriores permitem com que seu trabalho resulte no investimento de tempo para gerar materiais que rapidamente estarão na mesa. Agora é hora de começar a costurar as coisas. Conecte (mesmo que de forma sutil) algumas facções de uma região com uma nova, use eventos sazonais que interliguem NPCs e detalhes desse tipo. Um personagem de uma campanha antiga pode surgir agora como um vilão, ou como um aliado? As regiões podem ser costuradas sob o mesmo pano de fundo, resultando em uma expansão e aprofundamento desse conteúdo, de forma orgânica. Sem você perceber , estará tecendo um cenário próprio, cada vez mais rico e complexo.   

Atualmente eu já evolui muito o meu pano de fundo para um cenário bem mais complexo, que está em constante construção. isso me permite, com muito mais consistência, preparar novas regiões e diversas aventuras inseridas e entrelaçadas nesse cenário, em muitos casos, de forma interconectada a outra campanas, com resultados persistentes e que geram cada vez mais densidade. Tudo ocorre de forma orgânica, sem a demanda de qualquer superpreparação, e sempre com elementos úteis para serem explorados em mesas.


CONSIDERAÇÕES QUIRAIS

No livro de Jon Peterson: The Elusive Shift, há uma citação de uma proposta simples de Tim Waddell, publicada na fazine Wargamers Information, que buscava apresentar um caminho para você sair de maneira orgânica dos dédalos sombrios para um mundo afora. De imediato eu me lembrei do contraste disso com a proposta de Gary Gygax, publicada em 1975, regatada recentemente por Ray Otus em um fanzine gratuito chamado "desafio Gygax 75". Eu fiz uma resenha desse material, e logo em seguida o pessoal do blogue Dados & Canecas (abraço ao grande Marcelão) que viu essa resenha, correu para apresentar uma tradução. Foi um trampo bem legal e a coisa pipocou por aqui no nosso nicho do D&D antigo e suas adjacências. Mas uma coisa ainda me pegava: de uma forma geral era necessário um plano de cenário antes do jogo começar, com uma proposta de semanas de trabalho dedicado (e para muita gente, bem mais do que isso). Percebi na proposta embrionário de Waddell um caminho bem mais interessante, mas estava imaturo (e, talvez por isso, foi quase esquecido pelo tempo). Por isso fiz essa nova pauta, com 7 passos, trabalhada sobre aquela ideia virginal, de forma que se você ficar no primeiro passo, em uma experiência pontual, tudo bem, pois já teve ao menos uma degustação. Já no segundo passo você tem uma campanha em curso! O modelo do GG-75 então só seria usado, de certa forma, no passo "6", com mais experiência. Isso permitirá, de forma muito mais rápida e agradável, a surgirem novas campanhas vintage por aí, pois você começa a experimentar jogando, de fato.  

Espero de verdade que isso lhe seja útil! 

XP indicado

Ao longo do texto eu deixei linques diretos para o conteúdo abordado, além de sempre indicar importantes livros sobre a historiografia do D&D, que são minhas maiores fontes de estudo, registrados em nossas referências.

Em adicional, recomendo alguns conteúdos específicos:

1. Fanzine original de Ray Otus

2. Fanzine traduzia de Ray Otus (Dados & Canecos)

3. O artigo do blogue goblinpunch.

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Eixos de Alinhamento no D&D - Parte III/III

Por Quiral Alquimista


Na parte 01 dessa série vimos como Gary Gygax partiu de uma ideia embrionária no D&D0e para uma mais madura, publicada no artigo Strategic Review de 1976. Ali ele buscou basicamente alcançar dois objetivos: 1) deixar claro que Ordem x Caos não são sinônimos de bondade e ou maldade. Para isso ele criou um segundo eixo (Y), de Bem x Mal, culminando em cinco opções de alinhamento. 2) Melhor trabalhar a forma de usar alinhamento no jogo, reforçando a proposta de que é o comportamento de personagens que guiará o alinhamento. Há algumas contradições pontuais para que isso funcione bem, principalmente com a possiblidade do uso de classes alinhamento-dependentes, como druida ou paladino. Na parte 02 de nossa série mergulhamos na evolução disso, que ocorreu dois anos depois (em 1978) no PHB do AD&D, com um modelo mais robusto, fragmentando o eixo da neutralidade em cinco partes, proporcionando assim os 9 famosos alinhamentos. No ano seguinte GG trabalhou esse modelo com maior densidade (DMG), e busquei no artigo fazer uma varredura geral que nos permitiu olhar para a materialidade do RPG proposto, e como isso interferente significativamente na jogabilidade, culminando em uma fortíssima contradição: é o alinhamento, na prática, que guina o comportamento, não o contrário. Agora proponho apresentar uma solução! As edições seguintes não confrontaram isso de forma direta, interagindo mais ou menos com uma estrutura similar para à do AD&D1e. O que faremos é voltar à proposta inicial e destrinchá-la, mantendo a mentalidade do RPG estratégico e artesanal.

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Eixos de Alinhamento no D&D - Parte II/III


Por Quiral Alquimista 


As principais referências da mecânica de alinhamento do D&D original de 1974 são da literatura de Poul Anderson (TrêsCorações e Três Leões), onde a neutralidade era vista como um "desalinhamento" e de Michael Moorcock (Elric de Melniboné), na disputa de forças cósmicas entre ORDEM x CAOS, tendo a neutralidade como como uma efetiva busca por equilíbrio. Essa proposta funciona sobre um eixo (“X”, horizontal), com disputa entre forças do caos e ordem. Gygax apresenta uma evolução dessa ideia em seu artigo publicado no Strategic Review de 1976, v2, que tratei na parte 01 dessa série sobre alinhamento, em que propõe a inserção de um segundo eixo (“Y”, vertical), agora com duelo entre BEM x MAL. Ao que me parece, isso pode ter sido sugerido por Steve Marsh (segundo registro de correspondência deles):


 Como reportado na nossa parte 01, a proposta de Gygax com seu artigo é clara na ideia de que personagens não possuam alinhamento fixo, e é seu comportamento que definirá alinhamento, não o contrário.

Mas agora vamos analisar como isso avançou para o AD&D, publicado nos anos seguintes (MM: 1977, PHB 1978 e DMG 1979).

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Eixos de Alinhamento no D&D - Parte I/III

Por Quiral Alquimista 


Alinhamento de Personagem, Incluindo Vários Monstros e Criaturas:
 Antes do jogo começar, não é apenas necessário selecionar seu papel, mas também determinar qual postura será adotada - Ordem, Neutralidade ou Caos.

Personagem são limitados da seguinte forma por este alinhamento: humanos (qualquer), elfo (ordem ou neutro), pequenino (ordem), anão (ordem ou neutro).

                                                                                                                                                 (D&D0e, 1974)

quarta-feira, 11 de junho de 2025

O que "foi" a OSR?

 

Por Quiral Alquimista

No ano de 2017 eu assisti a uma aventura ao vivo que era uma divulgação do Dungeon Crawl Classics RPG pelo lançamento do financiamento coletivo de sua versão em português. Logo de imediato fiquei encantado com a primeira camada que percebi do sistema, com seus dados estranhos, as artes em preto e branco, personagens nível zero, todo o conteúdo em um único livro e alguns outros fatores que talvez eu apresente aqui oportunamente em um artigo dedicado. Para manter o foco, simplifico lhe dizendo que a experiência DCC-RPG foi crucial para os movimentos que fiz em seguida, como a curiosidade por suas origens, o que me levou a conhecer essa tal de OSR. Uma sigla do inglês para Old School Revival (ou Old School Renaissance) que significa algo como “O Resgate da Escola Clássica”. Posso dizer, sem sombra de dúvidas, que a XP que conquistei a partir de materiais e pessoas que interagiam com a OSR mudou para sempre minha vida como RPGista. Eu já tinha algo em torno de 25 anos de RPG, e nunca tinha visto nada tão valioso. Eu sei que esse é um termo em disputa, e que talvez você já tenha encontrado outras definições ou formas de explicar a coisa por aí. Este artigo se trata de uma leitura própria dos acontecimentos, ancorada em evidência concretas, com análise crítica e objetiva dos fatos.


ANOS 2000 E A TERCEIRA EDIÇÃO DO D&D

Para entender o que foi a OSR, é fundamental que se compreenda muito bem o cenário dos anos 2000s e a terceira edição do D&D. Eu não prestei atenção nisso à época, pois estava envolvido em campanhas com esta nova edição (e sua versão revisada, a 3.5), e mais tarde, em 2008, abracei a 4ª edição. Não era necessário ter a visão além do alcance de Thundera, pois o que eu não percebi foi um elefante na sala.

Em 1997 a Wizards of the Coast (WotC), uma empresa que crescia muito rapidamente a cada ano, anunciou a compra da TSR e de todos os produtos que a pertencia. Dentre eles e o maior RPG de todos os tempos: Dungeons & Dragons. As dívidas da TSR foram assumidas como parte da aquisição e muitos imbróglios, dentre elas pendências de royalties com Dave Arneson, o que permitiu uma decisão estratégica de remover o “Advanced” da linha AD&D e lançar sua terceira edição como Dungeons & Dragons. Eventualmente os escritórios corporativos da TSR foram completamente fechados, e foi nessa janela de transição que se tomou a decisão mais importante e central da história que trato neste artigo: o lançamento da terceira edição do D&D sob o comando dos três projetistas de jogos: Monte Cook, Jonathan Tweet e Skip Williams.

No meio dessa história, e na esteira do sucesso crescente da WotC com Magic: The Gathering e fermentação da nova edição do Dungeons & Dragons que a WotC foi adquirida pela Hasbro em 1999 por aproximadamente 325 milhões de dólares, se tornando assim um departamento estratégico de jogos dentro da gigante do entretenimento.

Embora eu já tenha tratado desse assunto de forma resumida no artigo sobre as edições do D&D, acredito que, para os fins da nossa discussão atual, é relevante compreendermos dois aspectos-chave: o novo sistema foi, pela primeira vez, alterado drasticamente para funcionar sobre uma mecânica centralizada no d20 e essa edição foi lançada junto de uma abertura do Documento de Referência do Sistema (do inglês System Reference Document, SRD) com uma licença aberta de jogos (do inglês Open Game License, OGL).

Forte impacto na jogabilidade

A nova estrutura de regras impactou profundamente toda a jogabilidade do D&D, que foi drasticamente alterada em seus três eixos: sistema, mentalidade e estética. 

1) Sistema: regras e sua usabilidade - As regras passaram a ser interconectadas por uma mecânica central de resoluções de conflito, que gira em torno do lance de um d20 + modificadores, contra um número alvo, o que ficou conhecido como “sistema d20”. Todo o sistema foi estruturado sobre uma alta granularidade, com progressão numérica importante, de forma que pequenas escolhas mecânicas (ex.: perícias, talentos, combinação de classes) impactam significativamente na forma de jogar, incentivando uma construção “engrenada”. As movimentações táticas passaram a ter grande peso, de forma que usar grades de batalha com medição exatas ganharam muita relevância para definir com acurácia posição, alcance e áreas de efeito.

2) Mentalidade: é a forma de pensar que se adota ao se engajar com um jogo - A mudança estrutural do sistema alterou a forma como se racionaliza o jogo, com mais enfoque no pensamento tático e otimizador. Personagens “bem construídos” são parte fundamental desse jogar, pois o sistema foi projetado para oferecer uma ampla variedade de escolhas mecânicas, fingindo uma maior liberdade, mas com diversas “opções armadilha” (trap options), que são escolhas apresentadas como viáveis, mas significativamente menos eficazes do que outras. Essas opções subótimas são construídas para que participantes menos experientes as escolham por parecerem interessantes ou temáticas à primeira vista, e aprendam com seus erros ao longo do jogo. Isso significa que “jogar bem” envolve uma evolução de maestria do sistema (system mastery). Isso vem casado com o que é chamado de economia de ações, que envolve uma preocupação concentrada em não desperdiçar opções de ações em um combate: ação, movimento, ação rápida, ataque de oportunidade.

Eu costumo chamar isso de “um jogo fora da mesa”, pois demanda estudar o sistema e melhor dominar suas opções de forma técnica, o que leva à mentalidade para buscar sinergias e otimizações, chamadas de “min-máx”, que envolve reduzir ao mínimo possível características que não trazem benefício direto e maximizar as características que geram maior vantagem mecânica.

3) Estética: envolve interações endógenas e exógenas com o jogo - As interações endógenas são os cenários, o mundo ficcional. No D&D 3e o uso de cenários completos e detalhados, como Forgotten Realms, passou a ser o padrão, principalmente os que possuem relação simbiótica com o sistema, com ênfase em personagens poderosos, magia abundante como ciência estruturada (listas, escolas, componentes) com civilizações complexas, panteões, e uma fantasia “explicada”. O cenário de Eberron, por exemplo, é considerado como a melhor expressão desta edição, lançado após vencer um concurso promovido pela WotC em 2002, destaca-se por suas características de magia onipresente e tecnologia fantástica, amplamente usadas no cotidiano, com seus trens elementais, bancos e toda sua pegada de steampunk mágico. Naturalmente aventuras e cenários caseiros começam a perder espaço para materiais oficiais, que entrelacem intrinsicamente com a 3e.  

Já as interações exógenas envolvem a forma como o jogo é apresentado às pessoas. Tem a ver com suas artes, diagramação, linguagem e referências. As ilustrações são de realismo técnico, com ênfase em heróis poderosos em ambientes fantásticos. Os textos foram escritos de forma normativa, com objetivo de transmitir informações claras para priorizar a interpretação estrita e literal das regras oficiais do jogo, com valorização para uma homogeneização de decisões. Isso significa que parte da proposta desse jogo envolve ter um sistema como ferramenta mediadora para um jogo certo e justo, com espaço reduzido para opiniões subjetivas. Essa estética impacta na mentalidade de um jogo que valoriza a fidelidade ao sistema, a uniformidade nas decisões e o domínio técnico das regras como caminho para uma experiência equilibrada.

Esses três aspectos combinados formam o que eu chamo de jogabilidade,   que foi drasticamente alterada, culminando com a ruptura de retrocompatibilidade e intercambialidade. Isso significa que todo o conteúdo de quase 30 anos de TSR passa a funcionar muito mal ou não funcionar com esta nova edição do jogo, bem como materiais lançados para essa edição são muito mal aproveitados nas edições da TSR.

Um ataque de oportunidade? A OGL 1.0a e suas possibilidades

O outro ingrediente-chave que compõe esse caldo foi a OGL 1.0a. Ela foi introduzida com a intenção de que qualquer pessoa, editora comercial ou não comercial, pudesse produzir materiais para D&D, de forma terceirizada, usando o chassi do Documento de Referência do Sistema (do inglês System Reference Document, SRD), sem pagar pelo uso da propriedade intelectual associada. A intenção por trás disso era lançar uma isca para ser mordida por profissionais ou amadores do RPG, que passariam a produzir conteúdo generalizado para D&D. Nascia assim a era do “sistema d20” (do inglês d20 system), estratégia que resultou em uma inflação de materiais e contribuiu de forma decisiva para consolidar o D&D como a marca principal do RPG, ampliando sua base de jogadores e conteúdo. Embora essa ideia tenha sido de grande sucesso comercial, ela teve alguns efeitos colaterais. Nada que fizesse cócegas na gigante WotC/Hasbro, mas crucial para o que abordo neste artigo: o surgimento do movimento OSR. A OGL não apenas abria a SRD da terceira edição do D&D, mas de qualquer edição anterior, permitindo assim que as versões antigas do D&D da era TSR fossem “liberadas” e adaptadas, dando base legal para o que viria ser a base fundacional da OSR.


Como surgiu a OSR?

Já no começo dos anos 2000 ocorreu sua fermentação por meio de algumas editoras que lançaram produtos para a terceira edição prometendo o espírito das edições antigas, como a Necromancer Games (2000) ou a Goodman Games (2003), esta que lançava a linha de aventuras Dungeon Crawl Classics (DCC), e que cerca de dez anos depois lançaria um sistema próprio (o DCC-RPG, que comentei no início deste artigo).

Logo nessa esteira veio uma proposta ainda mais ousada, a editora Kenzer & Company lançou o jogo Hackmaster em maio de 2001. O sistema foi inicialmente fictício, na forma de uma paródia de D&D jogado por personagens de história em quadrinhos, na segunda metade dos anos 1990s. Havia uma comoção de fãs para produção do jogo real, que acabou sendo possibilitada em 2001, lançada como uma 4ª Edição, uma brincadeira e homenagem às versões fictícias anteriores dos quadrinhos. A inovação aqui foi sua construção sobre as regras hibridizadas de AD&D1e, AD&D2e e vários suplementos da era TSR. Embora eu não saiba afirmar com acurácia sobre seu potencial retrocompatível, dentro do meu conhecimento este foi o primeiro sistema a ousar um rumo oposto ao da WotC e sua 3ed do D&D, sendo uma espécie de proto-OSR. Alguns imbróglios jurídicos acabaram levando à K&C a uma reestruturação em uma nova edição, lançada em 2009, na forma de Hackmaster Basic, já projetado com regras diferentes das dos D&Ds para evitar problemas contratuais.

Outro exemplo importante desse período embrionário foi o Castles & Crusades, projetado por Davis Chenault e Mac Golden. Na GenCon de 2004 eles trouxeram uma tiragem limitada de 1.000 caixas brancas, para relembrar a edição setentista do D&D, contendo três livretos e dados "Zocchi" com números sem pintura e um giz de cera (para colorir os números dos dados). Tratava-se de uma espécie de jogo rápido do que foi lançado no final daquele ano, e logo teve apoio valioso de Gary Gygax e Rob Kuntz, que usaram as regras de C&C para ressuscitar sua antiga campanha de D&D, Castle Greyhawk (agora renomeada como Castle Zagyg). A estrutura geral do C&C foi montada sobre as regras da 3ª edição do D&D, mas ele carregava fortes credenciais do D&D antigo pela participação de GG e Kuntz. Embora o entusiasmo inicial tenha sido grande, ele veio acompanhado logo em seguida de inúmeras reclamações sobre o desalinhamento do sistema com a jogabilidade do D&D antigo, o que acabou impulsionando o público para outros rumos.

É perfeitamente possível conectar o surgimento do movimento OSR com a popularização da internet, com o avanço da banda larga e a consolidação de fóruns e blogues, o que foi decisivo para o processo. Espaços como Dragonsfoot Knights & Knaves Alehouse reuniram entusiastas do D&D antigo, permitindo um debate contínuo sobre sua jogabilidade (que significa: sistema, mentalidade e estética). Blogues como Grognardia surgiram como espaço de crítica e reflexão sobre o RPG, o que influenciou fortemente na construção da primeira identidade deste movimento. De maneira bastante direta, a OSR despontou como uma resposta crítica à terceira edição. Embora esses materiais não tivessem mais suporte direto, o acesso aos PDFs da era TSR por versões escaneadas ou republicadas legalmente permitiu um contato inicial com a nova geração. Em adicional, plataformas como DriveThruRPG viabilizaram versões físicas por impressão sob demanda (PoD, do inglês Print on Demand). Isso tudo ocorreu em meio à “guerra de edições” do D&D, com fervorosos embates sobre quais edições são válidas ou não para esse resgate. No começo, o AD&D de Gygax foi a versão mais destacada, pois as edições em caixas do D&D (BX ou BECMI) eram apontadas como um “D&D infantil”, embora houvesse quem defendesse que eram opções mais fluídas e objetivas, atendendo melhor ao interesse geral. Para muita gente o AD&D2e era muito próximo do 3e, não sendo “antigo o bastante”. Eu não vou aqui entrar nesse mérito, pois acredito que ao longo desse texto teremos maior capacidade de olhar para a coisa com toda a sua complexidade. O fato é que nesse tipo de ambiente emergiram novos títulos inspirados, retrocompatíveis e intercambiáveis ao D&D antigo, usando a OGL como ferramenta de rompimento com a WotC e sua 3e. Nasceu assim o BFRPG (Basic Fantasy RPG), de Chris Gonnerman, em janeiro de 2006, que tinha como proposta recriar a edição B/X de 1981. Mas era um material incompleto e com algumas distorções, muito impactadas pelo receio de uma maior proximidade com as regras do D&D antigo e um potencial enfrentamento jurídico com a WotC. Na minha forma de ver a coisa, isso foi uma certa evolução do que foi o trabalho de K&C, com o Hackmaster. Logo em seguida veio um primoroso trabalho de Matt Finch e Stuart Marshall com o OSRIC (Old School Reference and Index Compilation) lançado também em 2006, como um compilado bem fiel ao AD&D1e.

Considero importante abrir uma nota especial para o grande Matt Finch, uma pessoa fundamental para o fortalecimento do movimento OSR. Ele iniciou como RPGista no final dos anos 1970s, com AD&D1e, e foi o responsável pelo rascunho inicial do OSRIC, repassado depois a Stuart Marshal para finalização, edição e impulsionamento. Como advogado (aposentado), Finch mergulhou nos detalhes jurídicos dessa inovadora e destemida incursão de usar as regras do D&D antigo em um novo produto, e partiu dele o reconhecimento da legalidade desse tipo de publicação, permitindo com que OSRIC ocupasse o lugar de destaque como um arrojado produto de altíssima similaridade com as regras da era TSR. Em adicional, em 2008, ele também lançou um importante material introdutório chamado: “Guia Rápido Para o Estilo de Jogo Antigo” (em inglês: A Quick Primer for Old School Gaming), conciso e prático, com objetivo de permitir com que novas pessoas conhecessem sua jogabilidade proposta com o D&D0e, com ótimos exemplos de contraste com a jogabilidade da terceira edição do D&D.

O lançamento de OSRIC permitiu que diversos outros autores acompanhassem a ideia, e logo vieram outras propostas, como Labyrinth Lord (2007, no chassi do BX) de Daniel Proctor, Swords & Wizardrydo próprio Matt Finch (2008, no chassi do 0e) e a republicação completa do BFRPG (2008, também no chassi de BX).

Nasceu assim, a primeira geração da OSR, uma era de “retroclones” do D&D, novos sistemas construídos sobre o chassi de regras do D&D antigo, que permitiam maior acessibilidade, com clarificações, com proposta de melhor diagramação e correção de erros óbvios. Alguns com maior presença autoral, com intervenções mais presentes, outros de forma mais sutil, mas no geral, retrocompatíveis e intercambiáveis entre si e, principalmente, ao D&D da era TSR.    

Mais tarde (já na transição da 5e para a 5.5e), no início de 2023, a WotC tentou substituir a OGL 1.0a por uma nova atualizada e mais restritiva, a OGL 1.1. Essa nova licença impunha cláusulas que davam à WotC mais controle sobre o conteúdo criado por terceiros. Uma forte reação veio da comunidade RPGistica, e essa mobilização acabou promovendo um recuo. Não vou tratar com mais profundidade esse assunto, pois essa treta não tinha como alvo principal o movimento OSR (que poderia sim, sofrer algum efeito colateral). Para isso deixo um vídeo sobre o tema, aqui

No final das contas, o que isso tudo significa? Ao longo dos anos 2000 a OSR foi um movimento que emergiu de forma colaborativa e descentralizada, norteado pelo enfrentamento da terceira edição do D&D com uma proposta de resgate e amadurecimento da jogabilidade do D&D antigo, com liberdade de criar, adaptar e publicar materiais caseiros.

Poderíamos encerrar o artigo aqui. Entendo que este resumo já é suficiente como uma introdução geral sobre o que foi, de fato, a OSR. Mas faço agora um convite para mergulharmos um pouco mais em busca das correlações de tudo isso com uma série de eventos que ocorreram ao longo dos anos 1980s, alterações e incorporações extremamente impactantes que contribuíram em maior ou menor grau para uma transformação do Dungeons & Dragons de um estilo de jogo para uma logomarca extremamente lucrativa.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

D&D E A FANTASIA MEDIEVAL

Por Quiral Alquimista

Você já se perguntou quais as razões que levaram o RPG a emergir ali nos anos 1970 como um RPG tipicamente de fantasia medieval? Por que não um RPG de mistério investigativo, como Braunstein? Por que não um RPG napoleônico, considerando que jogos de estratégia (wargames) tratando essa época eram muito comuns? Ou ainda um RPG de ficção científica, igualmente famosa nos anos 1970s? Meu objetivo neste artigo é destrinchamos os ingredientes que combinados permitiram produzir o Dungeons & Dragons como RPG de fantasia medieval!

CRIE SEU MUNDO DE JOGO JOGANDO

Por Quiral Alquimista  Em um RPG estratégico o foco do jogo reside em atingir um objetivo tangenciável. Pensando por esse aspecto e em toda ...