Por Quiral Alquimista
O primeiro RPG publicado na estrutura de jogo como conhecemos foi intitulado: Dungeons & Dragons. Pessoalmente penso que teria sido muito interessante sua localização aqui na terra dos papagaios como “Dédalos & Dragões”, mantendo o D&D como sigla com adequação do significado para nosso idioma. Pois muito bem, isso não foi feito nem no desenho dos anos 1980s, que ficou “Caverna do Dragão”, nem no sistema de jogo, que ficou sem tradução. Uma pena, em minha humilde opinião, fica apenas no nosso imaginário de possiblidades. Minha proposta com este artigo é destrincharmos o que está por trás do nome, para além de sua logomarca, e como isso expressa muito bem a estética e estilo do RPG vintage!
ETIMOLOGIA
A palavra dungeon tem sua origem no termo do francês antigo: donjon, que significava principal torre de um castelo. Sua origem é ainda anterior, do latim dominionem, que significava algo como "domínio", expressando uma fortificação segura e controlada. Com o passar do tempo dungeon passou a significar masmorra, que eram um ambiente subterrâneo escuro, sombrio e cheio de celas, usado como prisão nos famosos castelos europeus da idade média. Essa mudança semântica ocorreu pela associação com espaços projetados para punição e confinamento. Esse termo foi resgatado nos anos 1970s com o lançamento do D&D, e passou a ter a partir daí e ao longo das últimas décadas um significado expandido para além de clássicas masmorras, serve para caracterização de qualquer ambiente subterrâneo ou semi-subterrâneo que sirva como palco de aventuras, como: catacumbas, minas ou ruínas.
NOTA: o foco deste artigo envolve uma análise do principal ambiente de aventuras (dungeon), mas para não passar batido, deixo registrado que o complemento “dragons” completa elegantemente com sonoridade e significado, pois traz em essência todos os monstros que podem ser usados como desafios em aventuras, representados pelo mais famoso e clássico da fantasia: o dragão!
BLACKMOOR
Dave Arneson desenvolveu sua proposta de Blackmoor a partir das experiências com Braunstein, de David Wesely, suas próprias sessões de jogos de estratégias (wargames) com campanhas napoleônicas, jogos de tabuleiro (principalmente Diplomacy) e tinha como principal fonte de regras o suplemento de fantasia do Chainmail.
O cenário original era comunitário, desenhado junto à Castle & Crusade Society, que continha diversos membros (incluindo Gary Gygax) que criaram em conjunto um “Grande Reino”, com parcelas de terras concedidas e contestadas por membros da organização. Arneson assumiu a responsabilidade norte deste Grande Reino, e foi nessa região que começou a experimentar jogos de fantasia medieval que culminaram em Blackmoor (originalmente black moor, que significa algo como “charco preto”). Ao longo das campanhas no norte do grande reino foi permitindo o desenvolvimento de um microcenário próprio em torno de um misterioso castelo no alto da colina, que se mostrou extremamente atrativo. O interesse por explorar suas masmorras inferiores em busca de tesouros antigos e esquecidos foi se alastrando entre participantes, o que fez com que Arneson desenvolvesse cada vez melhor as raízes fundacionais do que conhecemos como “exploração de masmorras” (em inglês: dungeoncrawling, que eu pessoalmente tenho chamar de “dedalismo”), com seis níveis inferiores, cada um mais perigoso e labiríntico que o anterior, mas também com mais tesouros.
No outono de 1972, Arneson mestrou uma sessão de Blackmoor para o grupo de Lake Geneva de Gygax, experiência que explodiu a mente da galera. Foi assim que o “espelho” de Blackmoor foi preparado por Gygax, chamado de Greyhawk, e juntos iniciaram a co-autoria que fermentou criação do Dungeons & Dragons.
INSPIRAÇÕES PARA O AMBIENTE DE JOGO
Literatura
Ao analisar a lista de autores registrada no apêndice N (DMG de 1979), é possível extrairmos diversos conteúdos que certamente inspiraram os co-autores do D&D na projeção de aventuras por subterrâneos místicos e labirínticos cheios de tesouros e perigos. Não é meu objetivo aqui fazer uma varredura completa em todas essas referências, mas ilustrar com alguns bons exemplos que me veem a mente imediatamente. Nos contos do Conan, de Robert Howard, por exemplo, a navegação por catacumbas, masmorras ou cavernas labirínticas, enfrentando problemas de iluminação e localização são marcantes. Há uma passagem exemplar em "A Cidadela Escarlate" (1933):
Não podemos descartar um importantíssimo ingrediente desse caldo: Dave Arneson era fã de filmes de horror gótico, o que teve impacto direto na ambientação de suas aventuras. Nos relatos de seus colegas de mesa, os salões e corredores das masmorras de Blackmoor possuíam uma estrutura tipicamente dos castelos mal-assombrados. As inspirações vinham de filmes produzidos pelos estúdios da Universal nos anos 1930s, como "O Drácula"(1931), estrelado por Bela Lugosi, "Frankenstain" (1931), estrelado por Boris Karlof e "A Múmia" (1932), também com Boris Karlof mais uma vez no papel do monstro! O clássico castelo do Drácula do filme possui uma estrutura extremamente similar às aventuras de Arneson, com sua arquitetura imponente sobre uma montanha, exatamente como Blackmoor , seu aspecto decadente, com corredores escuros e tortuosos.
Embora não haja um castelo tradicional no filme Frankenstein, o cenário evocam o mesmo tipo de atmosfera do medo das clássicas masmorras. Como o laboratório de Henry,
com iluminação sombria e equipamentos científicos ameaçadores, bem como o moinho abandonado (onde ocorre o clímax), que a imagem decadente e ambiente ameaçador. Já no filme "A Múmia", a tumba de Imhotep é um cenário bem alinhado à ambientação
de mistério e medo. Espaços escuros e claustrofóbicos simbolizam o desconhecido e a morte, tendo ainda a abordagem da ressurreição de um ser antigo que ameaça com uma ancestral maldição, o que reforça temas de horror e sobrenatural.
ARQUITETURA DA MORTE
No d20age RPG – Livro Base, eu fiz a seguinte descrição:
Este não é um ambiente de aventuras vintage por acaso. Trata-se de espaço de escuridão misteriosa, arquitetura labiríntica, armadilhas mortais, enigmas traiçoeiros e criaturas sinistras! Isso gera toda uma hostilidade assustadora, o que resulta na atmosfera perfeita para antagonizar as ambições e os sonhos de personagens.
A realidade é que um dédalo geralmente é uma grande charada! Os desafios nele contidos, como as armadilhas, caminhos tortuosos, escuridão, enigmas ou criaturas, são, na verdade, elementos que fazem parte de um verdadeiro quebra-cabeças que será vivenciado, confrontado, superado (ou não) por participantes. Isso resulta em um real risco de morte de personagens, o que tornará o sucesso muito mais significativo!
Essa caracterização vem da escola do RPG estratégico, em que você, como Desafiante da Mesa (DM), prepara um mapa com obstáculos entre personagens e o objetivo (tesouros). No modelo clássico, em que experiência é computada na razão 1:1 com peças de ouro, o desempenho ideal no jogo seria personagens entrarem no local, pegarem o tesouro, e saírem ilesos. Mas “no meio do caminho tem um dédalo”!
Isso significa que a exploração faz parte do cerne desse jogar. Desvendar o melhor percurso é um importantíssimo desafio, pois o caminho é recheado de corredores irregulares, passagens secretas, portas trancadas ou emperradas e diversas criaturas que perambulam por aí, o que faz com que a arte de dominar essa melhor navegação se torne peça-chave para sucesso no jogo.
Por isso o mapeamento nesse estilo de jogo se faz extremamente relevante, pois é esperado que se façam várias incursões repetidas no mesmo ambiente, pois há uma demanda emergente por retorno ao local seguro por falta de recurso, morte de algum personagem ou enfrentamento de um perigo acima das capacidades. Ao longo das incursões se descobre entradas alternativas, rotas mais seguras, locais nos arredores que permitam recuo para acampamento protegido, passagens secretas, armadilhas e tudo mais de relevante nesse ambiente hostil e letal.
É possível abordar esse tipo de estrutura em outros tipos de ambientes? Claro que sim, mas é absurdamente mais fácil e operacional projetar aventuras em que a própria navegação é um desafio usando salas e corredores do que em ambientes abertos. O desconhecido no subterrâneo se torna ainda mais ameaçador, casado com a claustrofóbica e emocionante tensão extraída das revistas pulp.
CONSIDERAÇÕES QUIRAIS
Depois dessa viagem pelos túneis do tempo eu acredito que seja bem razoável dizermos que Dungeons & Dragons traz em seu nome um estilo de jogo bem característico. O ambiente labiríntico recheado de obstáculos faz parte da atmosfera das mesas e é o principal palco das aventuras vintage. O mapeamento é parte importante desse jogabilidade que busco resgatar e refletir em nossas mesas. Na releitura autoral do D&D clássico optei por chamar esses locais de dédalos não por acaso, além do mesmo “d” presente no próprio nome de nosso sistema, ele traz esse significado de um labirinto que contém caminhos e monstro (no caso, o Minotauro), como desafio. Além de, curiosamente, ser o próprio nome de seu arquiteto, um toque adicional fascinante nessa nomenclatura. Por fim me peguei contemplando os mapas de David Megarry, imaginando se você, que me lê, sentiu a mesma emoção por esse registro. Os mapas à mão desenhados a partir das percepções em primeira pessoa fazem parte de um RPG que cada vez me faz mais interessado e apaixonado em aprimorar. Me imaginei lá, como se eu fosse H.W. Dumbo, explorando aquelas salas sombrias e corredores tortuosas do castelo mal assombrado de Dave Arneson, certo de que é esse o tipo de RPG que eu quero!
TUDO É XP
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XP INDICADO (mergulhe ainda mais)
Ao longo do texto eu deixei linques diretos para o conteúdo abordado, além de sempre indicar importantes livros sobre a historiografia do D&D, que são minhas maiores fontes de estudo, registrados em nossas referências.
Recomendo fortemente ler "O Hobbit" e os contos originais de Conan, bem como diversos outros livros registrados no apêndice N, para maior entendimento dessas referências fundacionais do D&D.
Embora não faça parte da lista original de referência, o livro de Júlio Verne: Viagem ao centro da Terra, que resenhei aqui, é muito alinhado à esse estilo de incursão por um submundo místico.
Aventuras clássicas dos primórdios do D&D sempre são materiais interessantes, deixo aqui dois exemplos escritos pelos co-autores originais do D&D:
- The Temple of the Frog (Dave Arneson)
- Tomb of Horrors (Gary Gygax)
Por fim, deixo alguns caminhos para mais XPs alinhados ao tema:
- Documentário: Secrets of Blackmoor
- Artigo no blogue Hide in Shadows: O Castelo Blackmoor
- Artigo no blogue: The Alexandrian: mestrando Blackmoor
- Vídeo no canal sobre PORTAS!
- Vídeo no canal sobre MEGADÉDALOS!
-Video no canal sobre "O Hobbit"
Excelente artigo Quiral. Sou apaixonada pela historia do D&D. Durante anos fiquei só na curiosidade até que o livro Império da Imaginação me fisgou. Junto com Dados e Homens é a melhor dupla sobre D&D em português. No momento estou lendo Playing at the World que vai bem mundo nos época que antecedeu a criação do D&D e os conflitos entre Gygax e Erneson.
ResponderEliminarGrande Rafa, muito obrigado pelo texto. Tem horas que fico com a sensação que ninguém lê o blogue rs
EliminarSim, esses livros que você citou fazem parte de uma pequena base excelente que temos sobre a história de nosso jogo! Valem cada palavra S2
Estou com vontade de ler Blackmoor Foundations: The Early Fantasy RPG Works of David Arneson. Deve ser uma viagem no tempo incrível.
ResponderEliminarPois é, com esses estudos sobre as fundações do D&D eu fui descobrindo trabalhos bem legais também. Tem uma XP bem valiosa nesses dédalos do RPG S2
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