quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Eixos de Alinhamento no D&D - Parte I/III

Por Quiral Alquimista 


Alinhamento de Personagem, Incluindo Vários Monstros e Criaturas:
 Antes do jogo começar, não é apenas necessário selecionar seu papel, mas também determinar qual postura será adotada - Ordem, Neutralidade ou Caos.

Personagem são limitados da seguinte forma por este alinhamento: humanos (qualquer), elfo (ordem ou neutro), pequenino (ordem), anão (ordem ou neutro).

                                                                                                                                                 (D&D0e, 1974)

Nos clássicos livretos marrons do D&D de 1974, é assim que somos apresentados à proposta de alinhamentos. As demais informações estão espalhadas, o que exige uma varredura para capturar as informações que nos auxiliam na melhor compreensão de sua usabilidade, como, por exemplo: seu impacto na no feitiço de reencarnação, sua interação com efeitos de algumas magias e itens mágicos, há um idioma do tipo “alinhamento” e também é auxilia DMs na interpretação de NPCs e criaturas. No D&D antigo é perfeitamente possível jogar ignorando isso, sem abordar, de fato, alinhamento na mesa, mas também é possível extremar essa mecânica, colocando-a como protagonista no cenário de jogo. Acredito que é correta a afirmação de que não há uma  explicação consistente sobre sua origem e adequado uso, sendo exageradamente lacunar nesse aspecto. Em resumo ela veio para o D&D por inspiração da literaruta, principalmente de Michael Moorcock e Poul Anderson. Após a trinca básica de 1974 alguns conteúdos foram incorporados, buscando refinar sua usabilidade, trazendo consigo novas dúvidas e fermentando mais polêmicas sobre o caso. Em 1976, Gary Gygax tentou esclarecer essas confusões com um artigo publicado no StrategicReview (vol. 2). Nem de longe isso encerrou o assunto, que ganhou novas páginas com as novas edições do jogo, mas acredito que como um pontapé inicial, devemos começar com esse artigo, que anuncio aqui como uma primeira parte sobre o tema. Apresento na íntegra uma tradução pessoal.        

Nota de tradução: talvez você já tenha visto o uso de “leal” para traduzir o alinhamento “law” (em inglês). Optei por usar “Ordem” por entender ser uma opção mais adequada, pois expressa um conceito mais amplo de sua estrutura, regras e estabilidade social, que vai além do sentido jurídico restrito de “lei”. Além disso, evita confusões com “leal” e "lealdade" usadas no jogo que remete à fidelidade pessoal, expressa na mecânica de moral e lealdade (ML).


O SIGNIFICADO DE ORDEM E CAOS EM DUNGEONS & DRAGONS E SUA RELAÇÃO COM BEM E MAL [por Gary Gygax - fevereiro de 1976]

Muitas dúvidas continuam surgindo sobre o que constitui um ato “ordeiro”, que tipo de comportamento é “caótico”, o que constitui uma ação “maligna” e que tipo de comportamento pode ser considerado “bom”. Há muita confusão, pois a maior parte de DMs entende os termos “caótico” e “maligno” como similares, e, da mesma maneira, há equivalência entre “ordem” e “bom”. Isso não é nada surpreendente, considerando a forma como os três volumes originais de DUNGEONS & DRAGONS foram redigidos.
Na época em que escrevi aquilo, esses termos significavam praticamente a mesma coisa para mim – veja bem, não digo que eram sinônimos exatos. A redação do suplemento GREYHAWK adicionou um pouco mais de confusão, pois, à época, em que aquele livreto foi escrito, já haviam sido estabelecidas diferenças substanciais entre os conceitos.
Na verdade, se eu tivesse a oportunidade de refazer o D&D desde o início, teria deixado tudo isso muito mais claro, diferenciando essas quatro categorias de maneira explícita. Isso significa que muitas criaturas caóticas seriam boas, enquanto muitas criaturas ordeiras seriam malignas. Antes de entrar nas definições desses quatro termos, uma representação gráfica (Ilustração I) de suas posições relativas ajudará na compreensão do restante da explicação:

Ilustração I




Observe primeiro que a área da verdadeira neutralidade situa-se exatamente na interseção das linhas que dividem os quatro eixos, sendo uma área muito pequena em comparação com o restante do gráfico. Isso não se refere à neutralidade em interações específicas (como uma guerra que enfraqueça forças dominantes), pois mesmo ações aparentemente neutras não caracterizam a verdadeira neutralidade se beneficiarem os interesses próprios quando ocorre o enfraquecimento.

Note também que é perfeitamente possível mover-se dentro desse gráfico ao longo da campanha; por isso, DMs devem, de fato, levar isso sempre em consideração durante o jogo. Esse ponto será discutido mais adiante.

Agora, considere o termo “Ordem” em oposição a “Caos”. Embora sejam, sem dúvida, opostos, eles não são inerentemente bons ou maus em suas definições. Uma sociedade altamente regimentada é tipicamente governada por leis rígidas, ou seja, uma ditadura. Por outro lado, sociedades que permitem maior liberdade individual tendem a ser mais caóticas. As listas de palavras a seguir, que descrevem esses dois termos, demonstram isso. Eu organizei as palavras que representam os conceitos em uma ordem crescente de magnitude (do menor para o maior), no que diz respeito à forma como os termos são interpretados no D&D:

          Ordem x Caos

  • Confiabilidade × Indisciplinado
    (Reliability × Unruly)

  • Decoro × Confusão
    (Propriety × Confusion)

  • Com princípios × Tumulto
    (Principled × Turmoil)

  • Justo × Sem restrições
    (Righteous × Unrestrained)

  • Regularidade × Aleatoriedade
    (Regularity × Random)

  • Regulamentado × Irregular
    (Regulated × Irregular)

  • Metódico × Desorganizado
    (Methodical × Unmethodical)

  • Uniforme × Imprevisível
    (Uniform × Unpredictable)

  • Previsível × Desordenado
    (Predictable × Disordered)

  • Regras prescritas × Sem lei
    (Prescribed Rules × Lawless)

  • Estabilidade × Anarquia
    (Order × Anarchy)

Basicamente, então, “Ordem” é a lei estrita e “Caos” é completa anarquia, mas, claro, eles se graduam uma em direção a outra ao longo da escala, da esquerda para a direita, no gráfico. Agora considere os termos “Bem” e “Mal” expressos da mesma maneira:

Bem x Mal

  • Inofensivo × Inadequado
    (Harmless × Unfit)

  • Amigável × Travesso
    (Friendly × Mischievous)

  • Bondoso × Desagradável
    (Kind × Unpleasant)

  • Honesto × Desonesto
    (Honest × Dishonest)

  • Sincero × Dissimulado
    (Sincere × Bad)

  • Benéfico × Malvado
    (Beneficial × Wicked)

  • Puro × Corrompido
    (Pure × Corrupt)

  • Generoso × Egoísta
    (Generous × Selfish)

  • Altruísta × Malicioso
    (Altruistic × Malicious)

  • Justo × Injusto
    (Just × Unjust)

  • Benevolente × Malevolente
    (Benevolent × Malevolent)

  • Virtuoso × Vicioso
    (Virtuous × Vicious)

  • Leal × Traiçoeiro
    (Loyal × Treacherous)

  • Bem × Mal
    (Good × Evil)

 

Dessa forma, os termos “Ordem” e “Mal” não são, de modo algum, mutuamente exclusivos. Não há razão para que não possam existir regras prescritas e rigorosamente aplicadas que sejam desagradáveis, prejudiciais ou até mesmo corruptas. Da mesma forma, “Caos” e “Bem” não formam uma dicotomia. O caos pode ser inofensivo, amigável, honesto, sincero, benéfico ou puro, para citar alguns exemplos. Tudo isso indica que, na verdade, existem cinco alinhamentos, e não três, a saber: Ordem/Bem; Ordem/Mal; Neutralidade; Caos/Bem e Caos/Mal.

A classificação Ordem/Bem é exemplificada pela classe paladino, assim como Caos/Bem para o povo élfico, Ordem/Mal para vampiros, e o demônio representa o ápice de Caos/Mal. Os elementais são neutros. A reclassificação geral de várias criaturas está registrada na ilustração II, a seguir:

Ilustração II


A colocação de personagens em um gráfico semelhante ao da Ilustração I é necessária para que DMs mantenha um registro do alinhamento. Inicialmente, cada personagem deve ser posicionado exatamente no ponto central do seu alinhamento, ou seja, Ordem/Bem, Ordem/Mal, etc. As ações de cada sessão serão então levadas em conta para determinar a posição atual de cada personagem. O ajuste é, por força, muitas vezes subjetivo, mas como guia é possível considerar as ações de cada participante à luz das características que tipificam seu alinhamento, e ações opostas podem ser avaliadas também quanto à intensidade. Por exemplo, “confiabilidade” não reflete uma rigidez tão intensa quanto “com princípios”, assim como “justo”. “Indisciplinado” não indica um estado tão caótico quanto “desordenado”, assim como “anárquico”. De forma semelhante, “inofensivo”, “amigável” e “benéfico” refletem graus crescentes de bondade; enquanto “desagradável”, “prejudicial” e “maligno” transmitem níveis progressivamente maiores de maldade. O alinhamento não exclui ações que tipificam um alinhamento diferente, mas tais ações necessariamente afetarão a posição atual de cada personagem. Isso significa que a classe ou o alinhamento em questão pode mudar devido a essas ações, a menos que atos contrários sejam realizados para equilibrar a situação. Personagens que seguirem continuamente qualquer alinhamento (exceto a neutralidade) à risca de sua definição deverão eventualmente sair do gráfico (Ilustração I) e entrar em outro plano de existência, conforme indicado. Note que o egoísmo não é nem Ordem nem Caos, bem como também não é Bom ou Mau, exceto em relação a outras criaturas sencientes. Além disso, Ordem e Caos não estão sujeitos a interpretações em seus significados nos níveis de disciplina e indisciplina, respectivamente, Além disso, Ordem e Caos não estão sujeitos a interpretações em seus significados últimos de disciplina e indisciplina, respectivamente, mas Bem e Mal não são absolutos e devem ser julgados a partir de uma referência ética, algum ethos. A colocação das criaturas no gráfico da Ilustração II reflete, em certa medida, o ethos deste autor.

Considerando os deuses míticos e do mitos à luz deste sistema, a maioria dos benignos tenderá para o alinhamento Caos/Bem, enquanto o Caos/Mal tipificará aqueles deuses inimigos da humanidade. Poucos seriam completamente caóticos, sem predisposição para o Bem ou o Mal — talvez Crom, de REH, se enquadre nessa categoria. E quanto à interação entre diferentes alinhamentos? Essa questão é complexa e deve ser tratada com cuidado. Existe uma oposição diametral entre Ordem/Bem e Caos/Mal, e entre Caos/Bem e Ordem/Mal neste ethos. Tanto o Bem quanto o Mal podem servir a fins ordenados, e, inversamente, ambos podem servir a fins caóticos. Se presumirmos que o conflito universal é entre Ordem e Caos, devemos aceitar que, numa luta final, os seguidores de cada lado seriam representados por seres tanto do Bem quanto do Mal. Isso pode parecer estranho a princípio, mas, se a premissa principal for aceita, é bastante racional. Exceto numa batalha decisiva, é muito mais plausível que criaturas predispostas ao Bem tendam a se aliar contra qualquer ameaça do Mal, enquanto criaturas do Mal farão alianças (por vezes instáveis) para alcançar algum objetivo mutuamente benéfico — seja à custa do inimigo ou simplesmente para evitar a extinção. Criaturas do Mal podem ser compelidas a servir mestres inclinados ao bem, mas um personagem Ordem/Bem tenderia a fazer uso de alguma criatura Caos/Mal sem comprometer severamente sua condição ordenada (não necessariamente boa).

Isso nos leva ao assunto daqueles papéis de personagens que não possuem tanta liberdade de ação quanto os outros. O alinhamento Neutro é autoexplicativo, e a área de verdadeira neutralidade está mostrada na Ilustração I. Note, porém, que paladinos, patriarcas e altos sacerdotes do Mal possuem limites definidos. A área na qual um paladino pode se mover sem perder seu status está demonstrada na Ilustração III. Uma condução de jogo que leve a saída dessa área, deverá imediatamente buscar uma missão divina para recuperar seu status ou receber intervenção divina; nos casos em que isso não ocorrer, o status é perdido para sempre. Clérigos, sejam de inclinação para o Bem ou para o Mal, devem igualmente permanecer totalmente bons ou totalmente maus, embora o movimento lateral possa ser permitido, com ou sem retribuição divina. Clérigos de alto nível que falharem em se manter no eixo do Bem ou Mal deverão fazer algum tipo de expiação imediata. Se não o fizerem, simplesmente retrocedem para o sétimo nível. A expiação, bem como o grau de urgência dela, fica sujeita à interpretação de DM. Druidas servem apenas a si mesmos e à natureza; ocasionalmente praticam sacrifícios humanos, mas, por outro lado, ajudam as pessoas na agricultura e na criação de animais. Portanto, Druidas são Neutros — embora ligeiramente inclinados a ações malignas.

Como observação final, a maior parte da humanidade se enquadra na categoria Ordem, e a maior parte dessa humanidade ordeira situa-se próxima à linha entre o Bem e Mal. Poucos humanos se alinham ao Caos, e muito poucos se enquadram em Caos/Mal.

Ilustração III



CONSIDERAÇÕES QUIRAIS

Este artigo amostra que, ainda em 1976, Gary Gygax já reconhecia as limitações e contradições geradas pela mecânica de alinhamento do D&D original, propondo, assim, uma estrutura mais robusta sobre sua visão atualizada. É possível perceber que há uma busca para inserção de eixos cósmicos de Bem x Mal de forma separada de Ordem x Caos. Outro ponto interessante é que por essa nova proposta fica claro que o comportamento de personagens é que define seu alinhamento, não o alinhamento que define o comportamento de personagens. Mas isso carrega algumas contradições, como o que ocorre com as classes: Paladino, Druida e Clérigo, que sofrem graves consequências ao se afastarem de seu alinhamento, interferindo significativamente no fluxo de uma campanha.

É importante deixa claro que essa visão de Gygax registrada em 1976 continuou a ser desenvolvida ao longo dos próximos anos. No AD&D saiu no ano seguinte, já á uma expansão desse modelo para nove topos de alinhamento, combinando os eixos Ordem/Caos e Bem/Mal com derivações da Neutralidade. Além disso, em textos posteriores, Gygax apresenta outras versões para abordarmos alinhamento no jogo. Outros autores também entram nessa discussão, sempre com novas opções que geram novas ideias e polêmicas.

Este artigo não apenas nos oferece um raro olhar sobre o pensamento em transição de Gygax, mas também serve como ponte entre a estrutura lacunar do D&D original e a versão expandida e de maior interferência que veio no AD&D, alguns anos depois.
No artigo seguinte eu pretendo tratar mais sobre esse assunto, pois esse é um tema que eu nunca encontrei uma solução perfeita, e sempre me faz refletir formas de reaproveitamento da ideia para nosso RPG vintage!

Referências 

Ao longo do texto eu deixei linques diretos para o conteúdo abordado, além de sempre indicar importantes livros sobre a historiografia do D&D, que são minhas maiores fontes de estudo, registrados em nossas referências.

Em adicional, recomendo alguns conteúdos específicos, mas preste bem atenção: essas referências não são necessariamente alinhadas à este artigo, mas me ajudaram a refletir e chegar nas conclusões que cheguei para escrevê-lo, por isso considero que podem ser um caminho interessante.

- Ler os três livretos originais, D&D0e.

- Artigo original da Strategic Review V2 (1976), aqui

- Tema foi abordado no livro de Jon Peterson: The Elusive Shift.


2 comentários:

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