Alinhamento de Personagem, Incluindo Vários
Monstros e Criaturas: Antes do jogo começar, não é apenas
necessário selecionar seu papel, mas também determinar qual postura será
adotada - Ordem, Neutralidade ou Caos.
Personagem são limitados da seguinte forma por
este alinhamento: humanos (qualquer), elfo (ordem ou neutro), pequenino
(ordem), anão (ordem ou neutro).
(D&D0e, 1974)
Nos clássicos livretos marrons do D&D de 1974,
é assim que somos apresentados à proposta de alinhamentos. As
demais informações estão espalhadas, o que exige uma varredura para capturar as informações que nos auxiliam
na melhor compreensão de sua usabilidade, como, por exemplo: seu impacto na no feitiço de reencarnação, sua interação com efeitos
de algumas magias e itens mágicos, há um idioma do tipo “alinhamento” e também é auxilia DMs na interpretação de NPCs e criaturas. No D&D
antigo é perfeitamente possível jogar ignorando isso, sem abordar, de fato,
alinhamento na mesa, mas também é possível extremar essa mecânica, colocando-a como protagonista no cenário de jogo. Acredito que é correta a afirmação de que não há uma explicação consistente sobre sua origem e adequado uso, sendo exageradamente lacunar nesse aspecto. Em resumo ela veio para o D&D por inspiração da literaruta, principalmente de Michael Moorcock e Poul Anderson. Após a trinca básica de 1974 alguns conteúdos foram incorporados, buscando refinar sua usabilidade, trazendo consigo novas dúvidas e fermentando mais polêmicas sobre o caso. Em 1976, Gary
Gygax tentou esclarecer essas confusões com um artigo publicado no StrategicReview (vol. 2). Nem de longe isso encerrou o assunto, que ganhou novas páginas com
as novas edições do jogo, mas acredito que como um pontapé inicial, devemos começar com esse artigo, que anuncio aqui como uma primeira parte sobre o tema. Apresento na íntegra uma tradução pessoal.
Nota de tradução: talvez você já tenha visto o uso de “leal” para traduzir o alinhamento “law” (em inglês). Optei por usar “Ordem” por entender ser uma opção mais adequada, pois expressa um conceito mais amplo de sua estrutura, regras e estabilidade social, que vai além do sentido jurídico restrito de “lei”. Além disso, evita confusões com “leal” e "lealdade" usadas no jogo que remete à fidelidade pessoal, expressa na mecânica de moral e lealdade (ML).
O SIGNIFICADO DE ORDEM E CAOS EM DUNGEONS
& DRAGONS E SUA RELAÇÃO COM BEM E MAL [por Gary Gygax - fevereiro de 1976]
Muitas dúvidas continuam surgindo sobre o que
constitui um ato “ordeiro”, que tipo de comportamento é “caótico”, o que
constitui uma ação “maligna” e que tipo de comportamento pode ser considerado
“bom”. Há muita confusão, pois a maior parte de DMs entende os termos “caótico”
e “maligno” como similares, e, da mesma maneira, há equivalência entre “ordem” e
“bom”. Isso não é nada surpreendente, considerando a forma como os três volumes
originais de DUNGEONS & DRAGONS foram redigidos.
Na época em que escrevi aquilo, esses termos significavam praticamente a mesma
coisa para mim – veja bem, não digo que eram sinônimos exatos. A redação do
suplemento GREYHAWK adicionou um pouco mais de confusão, pois, à época, em que aquele
livreto foi escrito, já haviam sido estabelecidas diferenças substanciais entre
os conceitos.
Na verdade, se eu tivesse a oportunidade de refazer o D&D desde o início,
teria deixado tudo isso muito mais claro, diferenciando essas quatro categorias
de maneira explícita. Isso significa que muitas criaturas caóticas seriam boas,
enquanto muitas criaturas ordeiras seriam malignas. Antes de entrar nas
definições desses quatro termos, uma representação gráfica (Ilustração I) de
suas posições relativas ajudará na compreensão do restante da explicação:
Ilustração I
Observe primeiro que a área da verdadeira neutralidade situa-se exatamente na interseção das linhas que dividem os quatro eixos, sendo uma área muito pequena em comparação com o restante do gráfico. Isso não se refere à neutralidade em interações específicas (como uma guerra que enfraqueça forças dominantes), pois mesmo ações aparentemente neutras não caracterizam a verdadeira neutralidade se beneficiarem os interesses próprios quando ocorre o enfraquecimento.
Note também que é perfeitamente possível mover-se dentro desse gráfico ao longo da campanha; por isso, DMs devem, de fato, levar isso sempre em consideração durante o jogo. Esse ponto será discutido mais adiante.
Agora, considere o termo “Ordem” em oposição a “Caos”.
Embora sejam, sem dúvida, opostos, eles não são inerentemente bons ou maus em
suas definições. Uma sociedade altamente regimentada é tipicamente governada
por leis rígidas, ou seja, uma ditadura. Por outro lado, sociedades que
permitem maior liberdade individual tendem a ser mais caóticas. As listas de
palavras a seguir, que descrevem esses dois termos, demonstram isso. Eu
organizei as palavras que representam os conceitos em uma ordem crescente de
magnitude (do menor para o maior), no que diz respeito à forma como os termos são
interpretados no D&D:
Ordem x Caos
- Confiabilidade × Indisciplinado
(Reliability × Unruly) - Decoro × Confusão
(Propriety × Confusion) - Com princípios × Tumulto
(Principled × Turmoil) - Justo × Sem restrições
(Righteous × Unrestrained) - Regularidade × Aleatoriedade
(Regularity × Random) - Regulamentado × Irregular
(Regulated × Irregular) -
Metódico × Desorganizado
(Methodical × Unmethodical) - Uniforme × Imprevisível
(Uniform × Unpredictable) - Previsível × Desordenado
(Predictable × Disordered) - Regras prescritas × Sem lei
(Prescribed Rules × Lawless) - Estabilidade × Anarquia
(Order × Anarchy)
Basicamente, então, “Ordem” é a lei estrita e “Caos” é completa anarquia, mas, claro, eles se graduam uma em direção a outra ao longo da escala, da esquerda para a direita, no gráfico. Agora considere os termos “Bem” e “Mal” expressos da mesma maneira:
Bem x Mal
- Inofensivo × Inadequado
(Harmless × Unfit) - Amigável × Travesso
(Friendly × Mischievous) - Bondoso × Desagradável
(Kind × Unpleasant) - Honesto × Desonesto
(Honest × Dishonest) - Sincero × Dissimulado
(Sincere × Bad) - Benéfico × Malvado
(Beneficial × Wicked) - Puro × Corrompido
(Pure × Corrupt) - Generoso × Egoísta
(Generous × Selfish) - Altruísta × Malicioso
(Altruistic × Malicious) - Justo × Injusto
(Just × Unjust) - Benevolente × Malevolente
(Benevolent × Malevolent) - Virtuoso × Vicioso
(Virtuous × Vicious) - Leal × Traiçoeiro
(Loyal × Treacherous) - Bem × Mal
(Good × Evil)
Dessa forma, os termos “Ordem” e “Mal” não são,
de modo algum, mutuamente exclusivos. Não há razão para que não possam existir
regras prescritas e rigorosamente aplicadas que sejam desagradáveis,
prejudiciais ou até mesmo corruptas. Da mesma forma, “Caos” e “Bem” não formam
uma dicotomia. O caos pode ser inofensivo, amigável, honesto, sincero, benéfico
ou puro, para citar alguns exemplos. Tudo isso indica que, na verdade, existem
cinco alinhamentos, e não três, a saber: Ordem/Bem; Ordem/Mal; Neutralidade; Caos/Bem
e Caos/Mal.
A classificação Ordem/Bem é exemplificada pela
classe paladino, assim como Caos/Bem para o povo élfico, Ordem/Mal para
vampiros, e o demônio representa o ápice de Caos/Mal. Os elementais são
neutros. A reclassificação geral de várias criaturas está registrada na
ilustração II, a seguir:
Ilustração II
Considerando os deuses míticos e do mitos à luz
deste sistema, a maioria dos benignos tenderá para o alinhamento Caos/Bem,
enquanto o Caos/Mal tipificará aqueles deuses inimigos da humanidade. Poucos
seriam completamente caóticos, sem predisposição para o Bem ou o Mal — talvez
Crom, de REH, se enquadre nessa categoria. E quanto à interação entre
diferentes alinhamentos? Essa questão é complexa e deve ser tratada com
cuidado. Existe uma oposição diametral entre Ordem/Bem e Caos/Mal, e entre
Caos/Bem e Ordem/Mal neste ethos. Tanto o Bem quanto o Mal podem servir
a fins ordenados, e, inversamente, ambos podem servir a fins caóticos. Se
presumirmos que o conflito universal é entre Ordem e Caos, devemos aceitar que,
numa luta final, os seguidores de cada lado seriam representados por seres
tanto do Bem quanto do Mal. Isso pode parecer estranho a princípio, mas, se a
premissa principal for aceita, é bastante racional. Exceto numa batalha
decisiva, é muito mais plausível que criaturas predispostas ao Bem tendam a se
aliar contra qualquer ameaça do Mal, enquanto criaturas do Mal farão alianças
(por vezes instáveis) para alcançar algum objetivo mutuamente benéfico — seja à
custa do inimigo ou simplesmente para evitar a extinção. Criaturas do Mal podem
ser compelidas a servir mestres inclinados ao bem, mas um personagem Ordem/Bem
tenderia a fazer uso de alguma criatura Caos/Mal sem comprometer severamente
sua condição ordenada (não necessariamente boa).
Isso nos leva ao assunto daqueles papéis de personagens que não possuem tanta liberdade de ação quanto os outros. O alinhamento Neutro é autoexplicativo, e a área de verdadeira neutralidade está mostrada na Ilustração I. Note, porém, que paladinos, patriarcas e altos sacerdotes do Mal possuem limites definidos. A área na qual um paladino pode se mover sem perder seu status está demonstrada na Ilustração III. Uma condução de jogo que leve a saída dessa área, deverá imediatamente buscar uma missão divina para recuperar seu status ou receber intervenção divina; nos casos em que isso não ocorrer, o status é perdido para sempre. Clérigos, sejam de inclinação para o Bem ou para o Mal, devem igualmente permanecer totalmente bons ou totalmente maus, embora o movimento lateral possa ser permitido, com ou sem retribuição divina. Clérigos de alto nível que falharem em se manter no eixo do Bem ou Mal deverão fazer algum tipo de expiação imediata. Se não o fizerem, simplesmente retrocedem para o sétimo nível. A expiação, bem como o grau de urgência dela, fica sujeita à interpretação de DM. Druidas servem apenas a si mesmos e à natureza; ocasionalmente praticam sacrifícios humanos, mas, por outro lado, ajudam as pessoas na agricultura e na criação de animais. Portanto, Druidas são Neutros — embora ligeiramente inclinados a ações malignas.
Ilustração III
CONSIDERAÇÕES QUIRAIS
Este artigo amostra que, ainda em
1976, Gary Gygax já reconhecia as limitações e contradições geradas pela
mecânica de alinhamento do D&D original, propondo, assim, uma estrutura
mais robusta sobre sua visão atualizada. É possível perceber que
há uma busca para inserção de eixos cósmicos de Bem x Mal de forma separada de Ordem x Caos. Outro ponto interessante é que por essa nova proposta fica claro que o comportamento de personagens é que define seu alinhamento, não o alinhamento que define o comportamento de personagens. Mas isso carrega algumas contradições, como o que ocorre com as classes: Paladino,
Druida e Clérigo, que sofrem graves consequências ao se afastarem de seu alinhamento, interferindo significativamente no fluxo de uma campanha.
É importante deixa claro que essa
visão de Gygax registrada em 1976 continuou a ser desenvolvida ao longo dos
próximos anos. No AD&D saiu no ano seguinte, já á uma expansão desse modelo
para nove topos de alinhamento, combinando os eixos Ordem/Caos e Bem/Mal com
derivações da Neutralidade. Além disso, em textos posteriores, Gygax apresenta
outras versões para abordarmos alinhamento no jogo. Outros autores também
entram nessa discussão, sempre com novas opções que geram novas ideias e
polêmicas.
Este artigo não apenas nos oferece
um raro olhar sobre o pensamento em transição de Gygax, mas também serve como
ponte entre a estrutura lacunar do D&D original e a versão expandida e de
maior interferência que veio no AD&D, alguns anos depois.
No artigo seguinte eu pretendo tratar mais sobre esse assunto, pois esse é um
tema que eu nunca encontrei uma solução perfeita, e sempre me faz refletir
formas de reaproveitamento da ideia para nosso RPG vintage!
Referências
Ao longo do texto eu deixei
linques diretos para o conteúdo abordado, além de sempre indicar importantes
livros sobre a historiografia do D&D, que são minhas maiores fontes de
estudo, registrados em nossas referências.
Em adicional, recomendo alguns
conteúdos específicos, mas preste bem atenção: essas referências não são
necessariamente alinhadas à este artigo, mas me ajudaram a refletir e chegar
nas conclusões que cheguei para escrevê-lo, por isso considero que podem ser um
caminho interessante.
- Ler os três livretos originais, D&D0e.
- Artigo original da Strategic Review V2 (1976), aqui.
- Tema foi abordado no livro de Jon Peterson: The Elusive Shift.
Muito bom o texto Quiral!!!
ResponderEliminarValeeeu grande Bruno. Logo solto a continuação!!!
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